O método
Na vida cheia de atalhos, loucura soa como liberdade
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A senhora da fila do pão falava sozinha. Uma palavra aqui, outra ali, sorrisos entre frases desconexas. Parecia em outro mundo ou talvez no mesmo mundo que a gente, mas com outro filtro, outro idioma, outro ponto de vista.
“Doida”, cochicharam atrás de mim.
Balancei a cabeça com um certo orgulho. Aquela mulher era livre. E, se a liberdade é loucura, então talvez eu também precise enlouquecer um pouco mais.
Na universidade, me ensinaram que a loucura é uma construção social. Foucault gritava das páginas amareladas: “A loucura é aquilo que o poder não suporta escutar!”
E quem mais grita do que as mulheres que foram caladas a vida inteira?
Chamar de louca sempre foi um atalho.
É mais fácil dizer “ela é instável” do que admitir que ela está exausta.
É mais aceitável dizer “ela surtou” do que reconhecer que ela foi ignorada por anos a fio, tentando manter uma sanidade que ninguém ajudava a segurar.
Já percebeu que homem bravo é “assertivo”, mas mulher brava é “descompensada”?
Pois é. O hospício é mais perto para umas do que para outros.
Quando estive na beira do abismo e estive, não por opção, mas por circunstância descobri que a loucura, muitas vezes, é um abrigo. Um protesto íntimo. Uma última forma de dizer: me escutem.
E se ser louca for a única forma de não ser invisível?
Na antropologia, aprendemos a escutar os desvios. As falas marginais. As linguagens não ditas. E é na “loucura” que muitas vezes mora a denúncia mais sincera de uma sociedade em ruínas.
Uma mulher que quebra pratos talvez esteja gritando pelo amor que nunca recebeu.
Uma mãe que abandona tudo e vai morar sozinha talvez esteja tentando sobreviver.
Uma professora que chora no banheiro da escola talvez esteja segurando o mundo inteiro nas costas e ninguém viu.
Louca, pra quem?
Porque quem se diz normal costuma esconder muito bem suas rachaduras.
Já me disseram que minha sensibilidade me atrapalha. Que pensar demais é perigoso. Que escrever sobre dor afasta os leitores. Discordo.
A dor é uma casa com as portas abertas. E às vezes é lá que a gente encontra quem também tá tentando sobreviver.
Não quero mais fingir estabilidade. Não quero mais parecer feliz em reuniões sociais. Quero o direito de ser caótica, contraditória, cheia de perguntas.
Porque ser “louca”, pra mim, é ter método. Um método de resistência, de linguagem, de protesto e de poesia.
E se você leu essa crônica até o fim, talvez também esteja do lado de cá da fila do pão. Onde a gente não finge, não silencia, não engole.
Onde a gente vive, mesmo que do nosso jeito. Mesmo que digam que é loucura.
Afinal, tudo depende do ponto de vista.