Pós-COP30
Nascentes, a última voz das Águas
Publicado
em
Muitas delas, como as do Rio Piracanjuba, foram destruídas pelo avanço urbano e pelo desmatamento.
Em setembro de 2010, escrevi no Blog Multivias que “milhares e milhares de nascentes de nossos rios pedem socorro”.
Algumas, dizia eu, encontram fadas-madrinhas, como Helena Bernardes, que então lutava pelas nascentes do Rio Piracanjuba com uma coragem que parecia maior do que a própria geografia do Cerrado.
Quinze anos depois, percebo que, se naquela época as águas sussurravam, hoje elas gritam.
Onde nasce o Piracanjuba
O Rio Piracanjuba brota na Serra do Alicrim, entre Silvânia e Bela Vista de Goiás, solo sagrado do Cerrado, onde as raízes profundas armazenam água por baixo da terra como quem guarda histórias. Suas primeiras fontes descem discretas pelas encostas e seguem viagem rumo a cidades que carregam seu nome: Bela Vista, Piracanjuba, Morrinhos, até desaguar no Rio Corumbá.
É um rio essencial. Abastece famílias, irriga plantações, sustenta a pecuária, movimenta culturas tradicionais.
Mas está doente.
O rio que perde sua própria origem
A destruição começa sempre onde a vida começa: nas nascentes. Elas sofrem com:
• desmatamento,
• avanço urbano,
• cercas que engolem olhos d’água,
• propriedades privadas que transformam nascentes em fundações de muro,
• erosão acelerada pelo solo exposto,
• contaminação difusa por agrotóxicos e esgoto mal tratado.
A geografia não mudou. A dor, sim.
Helena Bernardes, que acompanhei com tanto respeito em 2010, hoje encontra nascentes destruídas, soterradas ou capturadas como se fossem matéria descartável.
E o que se destrói na origem, o rio carrega em silêncio.
O peixe que leva o nome do rio e que também desaparece
Existe um peixe chamado piracanjuba.
Elegante, forte, migratório, capaz de alcançar 80 centímetros, e cada vez mais raro.
Seu nome científico, Brycon orbignyanus, lembra a bacia do Rio da Prata.
Seu nome popular lembra Goiás.
E seu destino, infelizmente, lembra o do próprio rio: está ameaçado de extinção.
A piracanjuba precisa de rios limpos, de correnteza forte, de caminhos migratórios livres. Mas encontra:
• água turva,
• pesticidas,
• esgoto,
• represas que interrompem o percurso,
• perda de mata ciliar,
• destruição dos locais de reprodução.
É um símbolo perfeito – e doloroso, do que estamos perdendo.
Se o peixe que leva o nome do rio some, é o rio que está desaparecendo por dentro.
A poluição recente: quando o alerta deixa de ser metáfora
Em 2025, um relatório da Semad e do projeto AquaCerrado, conduzido por pesquisadores da UFG e UFJ, confirmou o que moradores já percebiam pela cor e pelo cheiro: o Córrego Sussuapara, em Bela Vista de Goiás, afluente do Piracanjuba, foi contaminado (Ver Referências). Encontraram:
• bactérias patogênicas,
• resíduos de pesticidas,
• falhas no tratamento de esgoto,
• e, sobretudo, acrilamida, um componente químico considerado potencialmente cancerígeno pela IARC (Leia nas Referências).
O córrego nasce onde nasceu a própria cidade de Bela Vista.
E agora carrega doenças. Carrega risco. Carrega urgência.
O Piracanjuba, que recebe essa água, também recebe essa herança de descaso.
A COP30 já ficou para trás, mas o problema ficou aqui
Passamos meses discutindo o futuro do planeta, assinando pactos, proclamando metas.
Mas nenhum acordo internacional resiste se um rio de Goiás, pequeno no mapa, mas imenso em significado, continuar morrendo na fonte.
O pós-COP30 nos obriga a olhar para o chão onde pisamos. Para a nascente que vira muro. Para o córrego que vira esgoto. Para o peixe que some da própria história.
A Terra não mente. E o Cerrado, muito menos.
Onde a água recua, a vida retrocede.
Onde a nascente desaparece, desaparece também o futuro que prometemos construir.
O que fazemos agora?
Retorno ao texto de 2010, ao final da minha crônica:
“E você, como está cuidando de cada gotinha de vida que chega até sua casa?”
Hoje, a pergunta é ainda maior:
Como estamos cuidando do rio que dá nome à nossa própria identidade?
Como estamos protegendo as nascentes que garantem abastecimento, biodiversidade, cultura e permanência?
O Piracanjuba, rio e peixe, nos pede socorro em duas vozes.
Uma corre pela superfície, outra nada por baixo da água.
As duas dizem a mesma coisa:
Ainda há tempo. Mas já não há tempo a perder.
……………………………………..
Referências: Confira no Blog Multivias.
@luisanogueiraautora