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Invenção de perdedores

Natimorto, voto impresso era a chance do capitão

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Armando Cardoso - Especial para Notibras

Após uma sequência longa de escritos cobrando do presidente da República provas concretas contra denúncias de fraudes no sistema eletrônico de votação, havia prometido a mim mesmo jamais tocar no assunto. Também prometera nunca mais exigir ações propositivas da cúpula da Justiça Eleitoral para defender a urna eletrônica, bem de todos os brasileiros. Não que o tema seja pesado, mas o cansaço apareceu. E decorreu inicialmente da percepção de que a fantasiosa alegação dos bolsonaristas para tentar melar o pleito de 2022 não ajudaria a mudar a derrota que, desde já, parece cristalina. A robustez da estafa surgiu quando percebi que malhava em ferro mais do que frio. Ou seja, não via em ninguém do comando do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a garra que experimentei em outras épocas.

Vivi tempos em que, mesmo criticada e nunca penetrada, a urna eletrônica era objeto do desejo de 11 entre dez brasileiros. Por isso, ministros, juristas e servidores vibravam quando precisavam defendê-la. A pé, de avião, barcaça, voadeira ou lombo de burro, o equipamento era levado por ministros e técnicos, que saiam Congresso ou Brasil afora ao primeiro sinal de dúvidas. A ordem era não deixar que uma única suspeita maculasse um processo que, além de elogiado em todos os cantinhos de pelo menos cinco dos seis continentes do planeta Terra, era muito caro para o país e para os ministros que nele acreditaram desde o início. Exclui a Antártida por razões óbvias: o continente é habitado por pesquisadores de 27 países diferentes. A maioria esmagadora das 4 mil pessoas do verão e das cerca de 800 do inverno não vota no Brasil.

Portanto, no continente gelado falar de urna eletrônica é o mesmo que enxugar gelo. Mas porque voltei ao tema? Porque descobri que, no país da mentira e das fake news, ainda tem gente que acredita em duende e em Papai Noel. Nada demais para quem crê nas propostas de Jair Messias. Nesse sábado, durante a caminhada matinal, me chamou atenção uma longa faixa colorida presa à lateral de uma caminhonete dirigida por um senhor de meia idade. A frase em corpo 72 afirmava que, sem auditagem, não haveria eleição. De imediato associei o nome à pessoa. Era um discípulo antecipado da derrota e, assim como Bolsonaro, um dos novos seguidores do ditador Hugo Chávez. Entendi o sofrimento e achei melhor não questioná-lo. Afinal, eles só acreditam em um deus, o mito do besteirol.

É claro que, silenciosamente, o informei que voto impresso é balela, invenção de perdedores. Entretanto, ficou latente que, apesar de praticamente sepultada pelo tempo e pelo custo altíssimo, algo como R$ 2,5 bilhões, a proposta de auditagem do voto continua habitando os pesadelos de todos os defensores do presidente da República, sobretudo os do próprio. Para torná-lo realidade, tentaram tudo de possível e impossível, inclusive espalhar inverdades contra o sistema eletrônico de votação. Aliás, a série de fakes news disseminadas para desqualificar o processo só não foi mais mortal do que aquelas que afirmavam (e afirmam) que a cloroquina acaba com a Covid e que a máscara de proteção facial mata por asfixia.

Não admitem a dificuldade de vencer no voto, mas insistem em criar fakes contra os fatos. Improvável sob todos os aspectos, mas só o golpe do tipo Maduro salva o homi. O sonho dourado seria a aprovação “democrática” de uma proposta de emenda à Constituição (PEC) de autoria de uma apoiadora do governo, a deputada Bia Kicis (PSL-DF). Se aprovada, a PEC reinstituiria o comprovante em papel do voto. A fórmula foi considerada inconstitucional em 2018 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e é criticada pela Justiça Eleitoral, que a avalia como alternativa custosa e insegura.

Praticamente engavetada pela ala majoritariamente sensata da Câmara, a sugestão estabelecia que, em caso de contestação sobre o resultado, esses comprovantes poderiam ser contados para aferir o resultado. Embora tenha sido menos proativo do que esperavam juristas, jornalistas e parlamentares que batem o pé contra o retrocesso, o TSE já fechou questão e não trabalha com essa hipótese, a menos que ela seja aprovada pela Câmara e Senado e validada pelo Supremo Tribunal Federal. Improvável nessa quadra da política nacional. Com a participação de deputados e senadores, tudo pode acontecer. No entanto, parece zero o risco do retrocesso.

Responsável por algumas das principais mazelas judiciais do governo, o ministro Alexandre de Moraes presidirá as eleições gerais de 2022. Definitivo em suas respostas, ele assegura que auditar a urna eletrônica pode significar a quebra do sigilo e da liberdade de escolha, pela possibilidade de mesários intervirem se falhar a impressão. Segundo ele, a probabilidade “não é apenas dos mesários saberem as escolhas do eleitor, mas também serem usados para coagir ou ameaçar quem votou conforme os candidatos registrados”. Para algo que já teve mãe, pai, avô, nome e sobrenome, o voto impresso parece natimorto. Como era o principal ou o único meio de subsistência (vitória) eleitoral do atual comando do país, na melhor das hipóteses o projeto acabou arrimo da família. Que descanse em paz.

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