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Vinho e vinagre

Natureza cobra governantes que priorizam interesses pessoais

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Mathuzalém Júnior - Foto Gustavo Mansur/Via ABr

Em política, não há meio termo. Na natureza também não. O conceito é simples, verdadeiro e inquestionavelmente atual. A política pode ser o ato nobre de prezar pelos interesses plurais da sociedade. A natureza é o bem mais nobre, necessário e permanente da vida, desde que cuidemos dela. O problema é que tanto a política quanto a natureza podem ser traduzidas na infame arte de priorizar interesses ou anseios próprios. Ou seja, confundir o público com o privado e o óbvio com o negacionismo é o mesmo que transformar vinho em vinagre, um simples hematoma em uma ferida incurável. O resultado pode demorar, mas quando chega é devastador.

No Rio Grande do Sul as mortes já passam de 100. São 164 mil desabrigados, 65 mil desalojados, 375 feridos e mais de 130 desaparecidos. Parafraseando o escritor e jornalista Xico Sá, não se trata de politizar a tragédia climática. No entanto, não há como esquecer que o Guaíba e os demais rios do Rio Grande do Sul ultrapassaram os níveis normais exclusivamente por conta da mão humana. Eles só queriam passar, seguir seus cursos. Foram impedidos pelo amontoado de lixo, pelo excesso de leis contrárias à passagem das águas e, principalmente, pela ação desumana do homem contra o meio ambiente. A natureza cobra. Às vezes, mais caro do que devia.

Foi o caso do Rio Grande do Sul, Estado em que boa parte da população passou de crítica dos retirantes da seca do Nordeste a retirantes da enchente em sua própria casa. É a mão de Deus? Claro que não! Não foi Deus quem elegeu os últimos representantes do Estado ou que fez pouco caso das crises existenciais do clima. Também não foi Deus quem alterou 480 pontos do Código Ambiental do Rio Grande, mudando o leito dos rios somente para ganhar mais espaço para shoppings, condomínios e praias artificiais, entre outras iniciativas populistas em busca do lucrativo acervo de votos extremistas.

Por fim, o que Deus tem a ver com o despreparo das autoridades que aprovam projetos liberando milhões de hectares de campos nativos, alguns deles baseados no Estado dos bolsonaristas estrelados Eduardo Leite, Hamilton Mourão e Sebastião Melo, prefeito de Porto Alegre? Nada vezes nada. Como peru de fora, o que posso dizer é que as leis divinas são feitas sob medida. O povo que foi desprezado um dia será exaltado. A noite no meio de um e de outro dia está aí para provar que os nordestinos estão entre os brasileiros que mais têm se solidarizado com a gauchada. Isso me faz lembrar do poeta dizendo: O tempo é o senhor da razão.

Lamentavelmente, o cenário extremado chegou pela histórica inércia da direita gaúcha. E não é história de pescador. Há décadas, os lamentos do Guaíba e dos rios da região são entendidos pelos governantes locais como chororô de insensíveis. O tempo passou e hoje os violentados rios são sinônimos de medo e de dor. Eles não são inimigos da direita ou vilões da esquerda. Transformados, desviados e aviltados, o Guaíba e seus parceiros só queriam passar natural e pacificamente. A política envolveu a natureza e não os deixou seguir seu curso normal.

A conta chegou, deixando em ebulição a politicagem explícita e implícita, aquela que se esconde nos porões das redes sociais. Os negacionistas se esconderam, mas seus fiéis escudeiros continuam capazes de tudo para borrar o trabalho sério de quem só quer ajudar. Bolsonaro e bolsonaristas podem não gostar de Lula da Silva. Faz parte da imbecilidade humana. Entretanto, aceitem como normal a solidariedade do governo federal com os representantes do bolsonarismo amargo e ingrato do Rio Grande do Sul. Não se trata de politizar a tragédia provocada pela natureza, mas de ajudar a quem precisa. Mais uma vez valho-me de Xico Sá para afirmar que o caos no Sul é político por si mesmo.

Ele é resultado da ganância financeira, do negacionismo climático e do descaso com os rios. E se tornou ainda mais político depois que Luiz Inácio elegantemente se negou a apontar culpados pela desgraça do Estado. Lula não tem interesse em pedir os votos dos gaúchos que o ridicularizaram em 2022. Também não pensa em agradar a Eduardo Leite e a seus seguidores. Como presidente da República, é sua obrigação socorrer o Rio Grande ou qualquer outro estado em situação semelhante. Os que tentam politizar o caos no Sul são aqueles pagos para maquiar negativamente o que, a olhos nu, vem sendo remendado e contido pelo trabalho de um governante casualmente de esquerda. O da direita está recolhido sabe-se lá onde, mas certamente cabalando votos para eleger apadrinhados nas próximas eleições municipais. Para ele, o Rio Grande Sul que se afogue.

*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978

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