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O filme

Neruda, de Larraín, seria exercício de imaginação?

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Luiz Zanin Oricchio

O problema de mexer com um ídolo nacional como Pablo Neruda é que, faça-se o que se fizer, sempre haverá descontentes. Se demasiado literal, arrisca-se ao adjetivo de “reverente” ou “chapa-branca”. Quando toma liberdades biográficas, corre-se o risco de despertar a fúria por estar distorcendo o personagem, os fatos históricos ou ambos. Neruda, de Pablo Larraín, não escapa a esse destino. Tem sido admirado mundo afora (está entre os finalistas ao Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro), mas ganhou reprimendas em casa.

Admiradores do poeta dizem que o Neruda interpretado por Luis Gnecco flerta, e às vezes namora abertamente, com a caricatura. “Adota lugares-comuns do antinerudismo”, aponta Raúl Bulnes, presidente da Fundação Pablo Neruda. “Tais como o do ‘comunista burguês’, frívolo, bon vivant, uma espécie atualizada de político light”, fulmina. Tudo em detrimento do defensor dos pobres, do poeta engajado e batalhador, do artista profundo de Canto General, obra que terminou por lhe valer o Prêmio Nobel de Literatura.

Bem, de fato, Larraín toma liberdades ficcionais a respeito do seu personagem, como aliás costumam fazer ficcionistas, na literatura ou no cinema. Mas não parece ser sua intenção proceder à desconstrução de um ídolo. Apenas demonstra o desejo de recolocá-lo em dimensão humana, tirando-lhe a tonalidade épica. Ou seja, retrata um Neruda sujeito a fraquezas e desejos, como todo ser humano; poderoso em certos momentos, frágil em outros, carente de reconhecimento como todos. Tudo isso não lhe tira grandeza, muito pelo contrário. Incomoda apenas a quem aspira a super-heróis inatingíveis, ou seja, crianças mentais.

O filme aborda um episódio específico da vida de Pablo Neruda (1904-1973). Trata-se da sua fuga, perseguido pelo presidente Gabriel González Videla, que colocou o Partido Comunista na ilegalidade e mandou prender seus militantes. Entre eles Neruda, que se elegera senador pelo PC em 1946. O ano da história contada é 1948 e o que vemos é o poeta empreendendo sua retirada pelo interior do país para escapar aos sicários de Videla. Tenta primeiro sair por mar, seguindo um plano traçado pelo Partido Comunista. Não dá certo e então Neruda vê-se obrigado a atravessar a Cordilheira dos Andes, ganhar a Argentina e, de lá, exilar-se na Europa. O mesmo episódio foi objeto do filme recente de Miguel Basoalto, que tenta se ater mais aos fatos, porém se torna muito seco e quadrado.

A inovação de Larraín, em termos de construção da arquitetura dramática, é a atenção concedida ao policial encarregado da perseguição a Neruda, Oscar Peluchonneau, vivido pelo mexicano Gael García Bernal (o Guevara de Diários de Motocicleta, de Walter Salles). Ambos, poeta e policial, dividem o protagonismo da história. Quase se poderia dizer que Oscar é mais importante que Neruda na trama. É dele a narração e, em certo sentido, o personagem é construído com mais poder de fascínio e ambivalência. Bastaria isso para acabar com o filme para a idolatria nerudista.

Mas talvez um ângulo mais justo de observação seja ver como se comporta na história o par perseguidor-perseguido. É nessa relação a distância que o filme ganha seu interesse, tensão e grandeza. Não existe desequilíbrio entre um e outro. Se Neruda é um personagem público, poucos traços bastam para defini-lo. Já um personagem anônimo, como o policial Peluchonneau, precisa ser construído com mais detalhes.

Precisamos entender, em especial, a dedicação com que se entrega à tarefa, um empenho muito maior do que o simples cumprimento de um dever. Oscar é um obcecado. Procura Neruda com o mesmo fanatismo inextinguível com que Javert perseguia Jean Valjean no romance Os Miseráveis, de Victor Hugo. Há, nessa tarefa, algo que extrapola a esfera racional e em consequência o filme torna-se alucinatório quando tenta compreender as motivações de Oscar Peluchonneau.

De resto, Neruda expressa a qualidade cinematográfica que Larraín coloca em seu trabalho, desde Tony Manero, passando por Post Morten, No, O Clube e, agora, Neruda. Larraín já tem novo longa pronto, Jackie, sobre Jacqueline Kennedy. Ou Onassis, se preferirem. Deve vir mais polêmica por aí. O cinema de Larraín é caprichado e nada óbvio. Não se veem enquadramentos simplistas nem imagens óbvias. Como diretor busca o inusitado, mas não o exótico. E seus temas não são nada fáceis de serem trabalhados. Em Tony Manero, Larraín falava do poder encantatório da cultura pop, em Post Morten, dos crimes da ditadura chilena, em No sobre o plebiscito para apear Pinochet do poder e, em O Clube, da pedofilia na Igreja. Em Neruda, toca num ícone da cultura chilena e da esquerda mundial. E o faz como quem não acredita nem em totens nem em tabus.

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