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E agora?

Netanyahu cai e deixa Bolsonaro mais isolado

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Autor/Imagem:
Mário Camargo/Com Agências Internacionais

Os brasileiros já viram esse filme nos últimos meses. Depois de apostar todas as fichas em um alinhamento pessoal, político e ideológico com o ex-presidente norte-americano Donald Trump, a quem chegou a dizer “eu te amo” nos corredores da Assembleia Geral da ONU, o presidente Jair Bolsonaro e o Itamaraty agora tentam reconstruir seu relacionamento com um país liderado por alguém radicalmente diferente – o presidente democrata Joe Biden.

Substitua Trump por Benjamin Netanyahu, o líder israelense que acaba de cair após 12 anos de governo, e a fórmula se mantém.

Nesta quarta-feira, um grupo improvável formado por políticos israelenses de diferentes vertentes anunciou a confirmação de uma coalizão construída para, acima de tudo, interromper a longa gestão de Nethanyahu, – cuja popularidade foi abalada por uma série de investigações de corrupção, suborno e fraude no país.

Espera-se que a guinada no núcleo duro do governo israelense, que agora reúne políticos ultranacionalistas, figuras de centro e até islâmicos árabes, tenha forte impacto na complicada geopolítica do Oriente Médio.

Mas ela também tem reflexos do outro lado do mundo – mais precisamente no gabinete do presidente brasileiro, novamente órfão de um de seus principais padrinhos políticos internacionais.

Após investir em uma intensa relação de elogios e apoio ao ex-premiê de Israel, a quem chegou a tratar como “irmão”, o presidente brasileiro agora se vê “mais isolado do que nunca” no tabuleiro político internacional, segundo analistas estrangeiros ouvidos pela BBC News Brasil.

“Esse é o problema de ter uma política externa que não é uma política de Estado, mas uma política partidária e ideológica”, avalia o professor Christopher Sabatini, pesquisador sênior para América Latina da Chatham House, instituto real de pesquisa mais prestigiado do Reino Unido.

“Antes de você se dar conta, seus aliados podem sair do cargo e você sobra sozinho.”

A reviravolta na política doméstica de Israel é fruto de um surpreendente encontro entre o centrista Yair Lapid, ex-ministro das Finanças e líder do partido Yesh Atid (“Há um futuro”, em hebraico), e Naftali Bennet, o cabeça do partido ultranacionalista Yamina (ou “À direita”).

O partido de Lapid foi o segundo mais votado nas eleições israelenses em março deste ano, depois do partido de direita Likud (“Consolidação”), liderado por Netanyahu.

Em 6 de abril, o presidente israelense Reuven Rivlin deu um prazo de 28 dias para que Netanyahu conseguisse construir uma coalizão para formar um novo governo. Como o atual premiê não conseguiu atrair partidos suficientes para atingir maioria no parlamento, Rivlin transmitiu a missão para o segundo colocado Lapid, que desde então vinha dialogando com diferentes grupos na tentativa de alcançar maioria, mesmo que heterogênea.

As negociações sobre a formação de um novo governo foram interrompidas em 10 de maio, quando uma nova rodada de hostilidades entre Israel e o Hamas teve início na Faixa de Gaza. No último dia 30, nove dias após o anúncio de um cessar-fogo, o direitista Bennet, ex-assessor-sênior, chefe de gabinete, ministro da Educação e da Defesa em governos recentes de Netanyahu, foi à televisão para anunciar o golpe final no governo do ex-aliado.

“Farei tudo o que for preciso para formar um governo de unidade nacional com meu amigo Yair Lapid”, exclamou.O acordo entre os dois políticos, que divergem em diversos temas-chave, entre eles a possibilidade da criação de um Estado palestino, prevê que Bennet seja o primeiro-ministro pelos próximos dois anos – quando será substituído por Lapid, que governará por mais dois.

A coalizão vencedora também une opostos como Avigdor Lieberman, um polêmico nacionalista de extrema-direita que certa vez sugeriu que membros “desleais” da minoria árabe do país deveriam ser decapitados, e o pequeno partido árabe Ra’am, que busca proteção oficial a costumes conservadores muçulmanos e mais verbas para cidades de maioria árabe.

Este será o primeiro partido liderado por árabes a participar de um governo de coalizão em Israel – o que por si só requereria uma mudança na postura de Bolsonaro em relação ao país.

Bolsonaro isolado
Mas o que isso significa para o presidente brasileiro, frequentemente fotografado junto a bandeiras de Israel e cuja plataforma, desde a campanha, era de alinhamento com o ex-premiê Netanyahu?

Para o historiador Federico Finchelstein, chefe do departamento de História e do programa de Estudos Latinos Americanos da New School, em Nova York, a intimidade mostrada publicamente entre os dois líderes, a partir de agora, deve acabar.

“É cedo para saber o que a nova coalizão fará em Israel, mas devemos esperar uma relação menos amigável, e uma relação baseada em geopolítica, em vez de ideologia”, aponta.

Para Christopher Sabatini, “construir uma aliança com o Brasil não vai ser uma prioridade do governo de coalizão israelense”. “Isso era uma política muito própria e pessoal de Netanyahu”, diz.

Na avaliação de Sabatini, que até pouco tempo também dava aulas sobre América Latina na Universidade de Columbia, “Bolsonaro trocou a diplomacia de Estado profissional do Brasil pela uma visão pessoal e limitada”.

“Ele acaba sendo refém de sua própria falta de tolerância e de moderação: basta se lembrar dos comentários dele sobre a esposa do presidente (francês Emmanuel) Macron. Um presidente não pode fazer isso.”

Em agosto de 2019, um seguidor de Bolsonaro fez comentários sexistas comparando as duas primeiras-damas. “Agora entende por que Macron persegue Bolsonaro?”, escreveu um homem sob uma foto dos dois casais. “Não humilha, cara”, replicou o chefe de Estado brasileiro, criando novo constrangimento internacional.

Finchelstein, especialista em radicalismo e populismo, diz não se surpreender com o revés enfrentado agora por Bolsonaro ao perder seu aliado pessoal no Oriente Médio.

“A situação mostra a falta de preparação da política internacional de Bolsonaro para uma situação de perda de seus pares autoritários”, avalia. “Esse característica, que também aparece na má condução e falta de planejamento sobre a pandemia no Brasil, se baseia na simples torcida pelo que pode acontecer, e não a partir de dados concretos e reais.”

Para Sabatini, “o Brasil já está isolado” e o novo governo israelense aprofunda o problema.

“Bolsonaro já está fora de compasso na maior parte da sua própria região e agora os únicos governos com quem ele pode contar como aliados são Turquia, Hungria e Polônia – nenhum deles exatamente estáveis – e Índia. E ele vai ficar mais e mais isolado globalmente”, pondera.

Finchelstein concorda e questiona: “Aliás, quão importante é a Hungria para os interesses geopolíticos brasileiros?”.

Embaixada em Tel-Aviv
Durante a campanha presidencial, já acenando ao então par israelense, Bolsonaro foi alvo de críticas em todo o mundo ao traduzir seu alinhamento ideológico com Netanyahu pela promessa de transferência da embaixada brasileira no país de Tel-Aviv para Jerusalém, a exemplo do que haviam feito EUA e Guatemala.

A mudança representaria uma guinada sem precedentes na postura da diplomacia brasileira, que sempre foi de equilíbrio entre o lado israelense e o lado palestino. O reconhecimento da cidade como capital de Israel poderia irritar não somente palestinos, países árabes e de maioria muçulmana, mas também gerar reações da comunidade internacional, cuja posição formal é de que o status de Jerusalém deve ser decidido em negociações de paz.

O entendimento é de que o reconhecimento de Jerusalém Ocidental como capital de Israel só poderá ocorrer ao mesmo tempo em que Jerusalém Oriental for reconhecida como capital de um futuro Estado palestino.

É por isso que os países mantêm suas embaixadas em Tel Aviv, a capital comercial de Israel.

A medida também teria impacto direto nas relações do Brasil com importantes parceiros comerciais: países árabes e muçulmanos, como o Irã, respondem por quase 6%¨de todas as exportações brasileiras – principalmente carne. Em março de 2019, em visita oficial a Netanyahu, no entanto, Bolsonaro recuou.

“O Brasil decidiu estabelecer um escritório em Jerusalém para a promoção do comércio, investimento, tecnologia e inovação”, anunciou o Itamaraty, que nunca mais tocou no tema da transferência da embaixada.O episódio ilustra o que especialistas apontam como prejuízos da perspectiva pouco conciliadora que, para analistas, marca tanto Netanyahu, quanto Bolsonaro.

Em entrevista recente ao jornal local Times of Israel, o novo primeiro-ministro Naftali Bennett disse: “Sou mais direitista do que Bibi (Netanyahu), mas não uso o ódio ou a polarização como uma ferramenta”.O professor da New School diz que “governos extremistas e populistas como Netanyahu e Bolsonaro baseiam suas políticas na demonização do outro, em vez de integração e diálogo”.

“No caso brasileiro, é uma quebra muito grande com administrações anteriores”, diz. “”Estamos vendo no Brasil que pessoas muito distintas, como os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula, podem se encontrar e pensar juntas sobre suas diferenças enquanto políticos democratas.”

“Já Bolsonaro está preso à uma ideologia problemática e, quando a realidade muda, seja nos EUA ou em Israel, temos uma nova lição sobre como políticas movidas pela vontade e por caprichos pessoais são tão prejudiciais.”

Mudança de postura?
Se o palácio do Planalto seguir a cartilha adotada após a derrota de Trump, Bolsonaro deve tentar recalibrar seu discurso a partir de agora.

Após apoiar abertamente a reeleição de Donald Trump, sugerir fraude nas eleições dos EUA e ter sido o último líder de um país democrático a parabenizar Joe Biden pela eleição, Bolsonaro escalou o então chanceler Ernesto Araújo como porta-voz de um diálogo renovado entre os dois países.

“Tive hoje longa e produtiva conversa com o Secretário de Estado Antony Blinken. Agenda 100% positiva. Ficou claro que há excelente disposição e amplas oportunidades para continuarmos construindo uma parceria profunda entre o Brasil e os Estados Unidos”, disse então Araújo pelo Twitter.

De lá para cá, sob intensa pressão por uma gestão classificada como errática e ideológica à frente do Itamaraty, Ernesto Araújo perdeu a cadeira e foi substituído pelo diplomata Carlos França, descrito como figura mais moderada.

Sua função seria “filtrar” o discurso ideológico que Bolsonaro direciona a apoiadores mais radicais em uma gestão mais pragmática nas relações internacionais do país.

A chegada de França ajudaria o Brasil a construir pontes com o novo governo israelense?

“Como podemos ver com os ministros da Saúde, nas questões mais polêmicas, é Bolsonaro quem decide. Os que tentaram uma abordagem mais científica ou pragmática foram demitidos. Na perspectiva democrática, a questão mais problemática da administração Bolsonaro é ele próprio”, avalia Finchelstein.

Para Christopher Sabatini, Bolsonaro agora está diante de um difícil quebra-cabeças.

“Ele vai precisar fazer sacrifícios em termos do que sempre considerou como princípios básicos: por exemplo, o apoio a uma definição muito limitada sobre Israel e seus interesses, ou uma nova visão sobre um Estado palestino. Ele vai mudar nesses pontos para conseguir se realinhar? Se o fizer, será um movimento pragmático, mas que vai fazê-lo parecer volúvel e abrindo mão do que caracteriza sua imagem e personalidade”, pondera.

“E, se não o fizer, então ele vai ficar ainda pior como líder global – o que o Brasil, no passado, aspirava ser”, diz.

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