Quinta, 19
Nordeste se ajoelha no dia do Corpo de Deus
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Na quinta-feira, 19, o Nordeste inteiro parece parar o tempo. As redes balançam preguiçosas nas varandas, o cheiro de incenso mistura-se ao do cuscuz madrugador, e as ruas ganham cores que nem o próprio sertão, em florada de mandacaru, ousa imitar. É dia de Corpus Christi.
Por mais que o calendário civil tente engolir os ritmos da fé, há datas que o povo guarda com zelo de altar. No dia do Corpo de Deus, como ainda dizem os mais antigos, o Nordeste se torna sacrário. Das capitais aos grotões, a quinta-feira se converte em procissão. O sol pode rachar o chão, mas ninguém falta. Porque nesse dia o Sagrado caminha entre os homens.
As crianças, de mãos tintas, desenham tapetes de serragem com devoção de artista barroco. Há flores, grãos, vidrilhos, pó de café, palhas de milho, tudo se junta para traçar caminhos para o Santíssimo. Os padres saem sob o pálio dourado, e os sinos tocam com um fervor que atravessa o tempo. Ali não há pressa: há fé.
O vaqueiro tira o chapéu. A rendeira suspende o bastidor. O pescador cruza os braços sobre o peito. O comerciário fecha cedo, o prefeito participa, o sanfoneiro se benze antes do arrasta-pé. Porque é feriado, sim — mas antes de tudo, é festa de fé. Uma fé que não se dobra ao relógio nem à modernidade: é chão batido, é coração que bate.
Há algo de profundamente nordestino nesse recolhimento público. Não se trata apenas de religiosidade; é identidade, é memória coletiva, é um povo que entende que, por um dia, tudo o que se movimenta deve fazê-lo em torno da Eucaristia. Jesus passa — e todos, sem exceção, param para ver.
Nas igrejas, os bancos lotam. Homens simples, mulheres de véu, jovens de camiseta de grupo de oração. O Nordeste reza com o corpo, com a voz, com os pés que caminham em cortejo. É fé que não se explica, só se sente. É cultura viva, misturada ao suor do povo e às belezas do ritual.
Interior
Em Arcoverde, no agreste de Pernambuco, o dia amanhece com cheiro de alfazema, pão quente e silêncio solene. É quinta-feira de Corpus Christi, e quem conhece o Nordeste sabe: não é um dia qualquer. O comércio abaixa suas portas mais cedo, os ônibus seguem em ritmo de procissão, e até os passarinhos parecem cantar mais devagar.
Na Rua do Livramento, Seu Amaro, 78 anos, já está de pé desde as cinco. Alfaiate aposentado, devoto de corpo inteiro, ele costurou décadas de fé e panos de altar. Sobre a camisa branca, passa a mão trêmula, mas firme, e diz: “Hoje quem vai passar na rua é o Rei. O Santíssimo. E a gente se apruma como se fosse para a presença do maior dos senhores.”
As mãos que um dia cortaram tecido fino agora colocam flores sobre o tapete de serragem. Ao lado dele, crianças e vizinhos compõem imagens de cálices, pães e corações com grãos de feijão e pó de café. Há desenhos do Coração de Jesus, pombas da paz, e até a representação do próprio Cristo em meio ao sertão — com cacto, sol de rachar e um jumentinho no canto. É arte que reza.
Na matriz de Nossa Senhora do Livramento, os sinos tocam com vontade, chamando fiéis como quem convoca uma cidade inteira para uma última chance de esperança. O padre Aurélio, com seus 35 anos e batina suada de tanto andar nos interiores, agradece a cada grupo de fiéis que veio de pau de arara, de carroça, de jegue, ou a pé mesmo. “Hoje o Senhor não espera que a gente vá até Ele. Hoje Ele vem até nós.”
E Ele vem mesmo. No ostensório dourado, sob o pálio carregado pelos homens mais antigos da comunidade — entre eles, Seu Amaro, convocado com honra —, o Corpo de Cristo percorre as ruas cheias de fé, perfume e calor humano. O povo se ajoelha, faz silêncio, chora. Uma mulher canta um hino antigo, de quando era criança e sua avó a levava pela mão nessa mesma celebração.
Nas calçadas, os tapetes se desfazem sob os pés dos devotos, mas ninguém lamenta. Cada passo do Santíssimo é uma bênção. Cada grão pisado, uma oração levada ao céu.
E quando a tarde escurece em tons alaranjados sobre a serra do Cruzeiro, e o último cântico se apaga nas vozes cansadas mas felizes, Seu Amaro senta-se à porta da casa e acende o rádio para ouvir a Ave Maria. Suspira como quem terminou um ofício nobre e murmura, como todo ano: “Valeu a pena. O Corpo de Cristo passou por aqui.”
O Nordeste para, sim. Mas não por inércia. Para porque é assim que se reverencia o Sagrado. Com respeito, com tapetes de fé, e com a alma rendida. Porque nesse chão sofrido, o que sustenta o povo é muito mais do que esperança: é a certeza de que Deus caminha junto.
E, quando o sol se põe no final da tarde, e a última pétala cai sobre o asfalto colorido, resta no ar um silêncio agradecido. Mais um Corpus Christi celebrado. Mais um dia em que o Nordeste se ajoelhou com dignidade e beleza. Um povo que para, não para descansar. Para rezar.