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Primavera de quatro anos

Novo rumo que espera o Brasil é apenas uma questão de tempo

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Mathuzalém Júnior* - Foto Ricardo Stuckert

Numa noite deste fim de primavera, encontrei um desses amigos queridos, mas que a gente prefere não ver com a mesma frequência daqueles guardados no coração. E não tem nada a ver com a ideologia, embora ele seja um desses fanáticos raiz que, às 22h do último dia 11, viraram a lanterna do celular na direção das estrelas, de modo que a luz fosse captada por todos os países de direita e, assim, conseguissem derrubar Luiz Inácio. De doido para maluquete, perguntei se ele havia visto a Zumbilândia, o Boi Tatá ou o Curupira. Grosseiramente, o sujeito respondeu que me viu comendo grama depois da posse de Lula Lá. Fiquei calado, mas grama é muito melhor do que lamber coturno em frente aos quartéis. Tem gente para tudo. Respeito sua lógica psiquiátrica, mas nada me impede de rotulá-lo de “patriota” sem tutano algum.

Afinal, cada um sabe onde um Lula da Silva lhe aperta. Interessante é que tudo isso porque eu queria somente registrar que estamos bem perto do verão, a estação mais esperada pelo povo dos trópicos. Nada mais. Ele levou a conversa tão a sério que resolveu buscar na sua história alguns fatos equivocados sobre a doce, mas seca primavera. Por exemplo, além de, é claro, relembrar a derrota do mito Jair Messias, citou a Primavera de Praga como um ato desumano de comunistas, mesma adjetivação usada pelo meu interlocutor para ilustrar os eleitores de presidente eleito Luiz Inácio. Mais um equívoco. Frustrado, tentei mostrar que o “amigo” estava redondamente enganado a respeito da invasão da então Tchecoeslováquia, hoje República Tcheca, cuja capital, Praga, é uma das mais belas do mundo.

Inicialmente, informei que a vitória de Lula, que não é comunista, começou a se desenhar no verão de 2018, isto é, um mês depois da posse de Bolsonaro, o pior presidente democraticamente eleito que o país já teve. E não é uma avaliação singular. Foram mais de 60 milhões de voto, sem contar os arrependidos de última hora que preferiram se esconder. Não sei se ele entendeu, mas expliquei que, ao contrário do que imagina, a Primavera de Praga foi uma mobilização popular iniciada em janeiro de 1968 (no verão) e previa reformas políticas, sociais, econômicas e culturais. Sob o comando do presidente tcheco Alexander Dubcek, na verdade a iniciativa envolveu as massas em busca de um “socialismo humanizado” e crítico ao regime stalinista da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Em agosto do mesmo ano, as tropas russas invadiram a Tchecoeslováquia, em uma tentativa de reprimir a agitação reformista.

Ou seja, a URRS comunista é quem inverteu o polo. Outros fatos históricos, relevantes e tristes de 1967 foram a rejeição da emenda que restabeleceria as eleições presidenciais diretas, a promulgação da sexta Constituição brasileira, da nova Lei de Imprensa, que impôs a censura prévia por agentes federais na redações de jornais e emissoras de rádio e televisão, e da Lei de Segurança Nacional, todas sob a batuta do Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. Em 15 de março, o marechal Arthur da Costa e Silva toma posse como o 27º. presidente do Brasil. Quatro meses depois, no dia 18 de julho, morria Castelo Branco em um acidente aéreo, em Fortaleza, no Ceará. Se vale como referências, em 1967 nasceram o ator Guilherme Fontes, a cantora Marisa Montes, o cineasta José Padilha, o rapper Marcelo D2 e os ex-jogadores de futebol Palhinha e Valdeir.

Resumindo, pouco ou nada a ver com a nossa terminal primavera, tema primitivo de nossa “conversa”. Para não perder a viagem, decidi mudar o rumo da prosa e o lembrei de uma das mais belas canções de todos os tempos, lançada exatamente na primavera de 1967, embora só tenha estourado no verão de 1968. Refiro-me a San Francisco (Be Sure to Wear Some Flowers in Your Hair), escrita e musicada por John Phillips, o líder do grupo The Mamas & the Papas, e magistralmente interpretada por Philip Wallach Blondheim, nome de batismo do mito Scott Mckenzie. Hino da contracultura sessentista, San Francisco marcou e iluminou a adolescência e juventude dos “parças” de minha geração, assim como Califórnia Dreamin e Monday Monday, canções da mesma época e do mesmo autor. San Francisco é uma música que jamais será esquecida. Da mesma forma, ninguém esquecerá que a vitória de Lula se consolidou na primavera.

Também é do primaveril o movimento hippie, surgido na cidade de São Francisco, na costa oeste dos EUA, onde os jovens conscientes mostraram que não estavam dispostos a viver da mesma forma tradicional e conservadora da maioria das famílias de então. A juventude também se insurgiu contra a Guerra do Vietnã. Foi a década mais contestadora do século passado. Após a forçada tergiversação musical, meu amigo (agora sem aspas) relaxou e até cantarolou a canção. Para minha alma benevolente e de máximo perdão, a lição que ficou é que nem tudo está perdido. Antagônicos no modo de viver – sou acumulador de conhecimentos e de amores e ele de bens, favores e penhores -, somos, no entanto, da mesma escola suburbana de vida. Acredito no fim do fanatismo. Por isso, novamente optei pelos ensinamentos de Abraham Lincoln, para quem “A melhor parte da existência de uma pessoa está em suas amizades” ou “A perda de um inimigo não compensa a de um amigo”. A aceitação do novo rumo é apenas uma questão de tempo. Afinal, no fim de tudo não são os anos da vida que contam, mas a vida que há nos anos.

*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978

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