Curta nossa página


Asa Norte

O alfarrábio do Horácio

Publicado

Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Irene Araújo

Lá estava o Horácio remexendo na estante até que, por milagre ou perseverança, encontrou seu alfarrábio, onde costumava, nos seus tempos de juventude, anotar as conquistas amorosas. Não que fossem tantas que não conseguisse se lembrar dos nomes. Era uma questão de rememorar as minúcias, como um serial killer que busca regozijo ao se recordar da cena do crime.

Não pense você que o sujeito fosse um assassino, pois era do tipo que preferia escoltar barata para fora do apartamento a pisoteá-la que nem um gigante cruel diante de ser desprovido de tamanho. No caso em questão, Horácio queria injetar um pouco de ânimo na rotina tão insossa.

Deu uns tapas na capa, que estava coberta por fina camada de poeira. Tossiu, mas logo se recompôs. E, antes de abrir o volume, tentou puxar pela memória o que estava escrito na primeira página. Sabia que era algo sobre Kátia, o primeiro amor que saiu da esfera platônica.

O primeiro beijo, segundo os garranchos, fora dado no intervalo do cursinho pré-vestibular na manhã do dia 20 de março de 1996. Que lábios sedosos, úmidos e cálidos. Grandes olhos castanhos que carregavam esperança, apesar das angústias que afligiam a jovem de cabelos escuros, cujos cachos eram um mistério.

Horácio não teve de desvendar tamanha charada, mesmo porque a página seguinte foi o epílogo do relacionamento. Sem aviso prévio. Simplesmente aconteceu, tácito que nem flagrante de lábios unidos entre Kátia e Sérgio. Por quê? Nunca soube, não teve coragem de perguntar. Passou a se sentar na frente, o que fez o então rapazola se concentrar nos enigmáticos problemas de matemática e, finalmente, passar no vestibular.

Formou-se sofrivelmente em engenharia civil. Evitou exercer a profissão, pois temia ser o responsável pelo nascimento de edificações previamente condenadas. O diploma, no entanto, não foi totalmente em vão. Serviu-lhe para prestar concurso público e ter uma vida sem grandes percalços financeiros.

Júlia. A bela paraibana, colega de trabalho. Foi atração à primeira vista. Unilateral, que quase virou obsessão. Horário passava noite e noite em claro, chegava ao trabalho com olheiras tão profundas, que o chefe imaginou que o funcionário estivesse com moléstia grave. Bem, grave era, mas nada que pudesse provocar morte súbita.

Quando a cura estava se abeirando, eis que o inesperado aconteceu. Júlia, do nada, numa terça-feira, dia 11 de fevereiro de 2003, colocou lenha na fogueira.

— Horário, por que você nunca me chamou pra ver um filme?

O gajo arregalou os olhos, aprumou os ouvidos, como se aquilo fosse um sonho.

— Vo-vo-você quer sair comigo?

— E por que não iria querer?

O improvável casal foi ao cinema assim que saíram do serviço. Pegaram uma sessão pouco movimentada, o que garantiu a paz para os primeiros toques de mãos e, quando os letreiros anunciavam o término do filme, arriscaram o primeiro beijo.

Para surpresa e decepção de Júlia, Horário se mostrou cavalheiro além do esperado. Pois não é que o homem fez questão de deixar a moça na porta do apartamento, beijou-lhe os lábios suavemente, deu meia-volta e foi embora?! Isso apesar da mulher tentar puxá-lo porta adentro.

Horácio retornou para seu apartamento feliz da vida, como se tivesse tirado a sorte grande. Bem, até tirou, mas…

Na manhã seguinte, Júlia passou pela mesa do Horácio e, pasmem, o ignorou por completo. Ele ficou com aquele sorriso amarelo no rosto. Não entendeu bulhufas e, possivelmente, apesar de reler o diário, ainda não aprendeu a ler nas entrelinhas e, portanto, não é bom em entender insinuações.

Encucado ficou, é verdade. Mas logo foi arrastado para outro furacão chamado Flávia. Ah, a Flávia! Coxas capazes de vencer qualquer batalha ladeira acima. E, mais uma vez, o tímido Horácio foi paquerado com a maior desenvoltura de quem conhece os trâmites do negócio.

— E aí, Horário! Tá de bobeira hoje?

— O quê?

— Tá de bo-bei-ra?

— Como assim, Flávia?

— Tu não quer me convidar pra sair?

De repente, naquela terça-feira, dia 11 de março de 2003, eis que não aconteceu apenas um, mas vários beijos ardentes, que fizeram o homem ter certeza de que aquilo só poderia ser amor. E foi, não resta dúvida, até que, dois meses depois, Horácio, flores e caixa de bombons nas mãos, bateu à porta do apartamento da amada. Quem atendeu não foi a Flávia, mas um tipo enorme que, por ironia do destino, se chamava Ricardo.

— Pois não?

Horário, braços para trás, tentou esconder os presentes, ficou pálido. Quem era aquele cara?

— Ô, meu amigo, o que tu quer?

— Vim trazer esses presentes pra Flávia.

— Ah, tá! Me dá aqui, que entrego pra ela. Já tá pago?

— Sim.

— Então, obrigado, amigo. Bom dia!

Antes de fechar a porta, o tal Ricardo abriu a caixa de bombons, pegou um e o mordiscou. Pobre Horácio, antes de ir embora, ainda ouviu a voz do sujeito:

— Amor, tava mesmo precisando de chocolate pra recompor as energias.

Bem, não adianta chorar sobre o leite derramado. Mesmo assim, ninguém conseguiu aplacar a dor de cabeça que acompanhou o Horário por semanas, meses e, não seria exagero, até anos. Mas eis que ontem, após outras desventuras do coração, o amor parece ter ressurgido das cinzas.

Amanda apareceu no horizonte… Não exatamente no horizonte, pois acabara de sair do banheiro do barzinho frequentado por Horácio e seus colegas, ali no início da Asa Norte. Todos os presentes acompanharam o caminhar cambaleante da mulher que, por esses acasos cada vez mais frequentes, caiu no colo do Horácio.

O casal de última hora pareceu se combinar tão bem, que a noite foi longa e proveitosa. Ainda bem! Foi ontem, 18 de novembro de 2025. O que acontecerá daqui para frente, ninguém sabe. Todavia, enquanto a Amanda ainda repousa no quarto, lá está o dândi escrevendo mais uma página no seu alfarrábio.

……………………

Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’ (Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos).

Compre aqui

https://www.joanineditora.com.br/57-contos-e-cronicas-por-um-autor-muito-velho

Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2025 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.