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Tecendo letras

O Alquimista das Palavras

Publicado

Autor/Imagem:
Luzia Couto - Foto Francisco Filipino

No canto de uma sala mal iluminada, onde a luz da lâmpada tremeluzia como se tivesse segredos a contar, o escritor se sentava. À sua frente, uma folha em branco, um desafio que era ao mesmo tempo convite e abismo. Ao lado, uma xícara de café esfriava, esquecida, enquanto seus dedos dançavam hesitantes sobre o teclado, como quem tenta capturar um pássaro que voa rápido demais. O escritor não era apenas um homem, ou uma mulher, ou uma figura qualquer era um caçador de instantes, um escultor de silêncios.

O poeta, esse primo-irmão do escritor, vivia na mesma sala, mas em outro plano. Enquanto o escritor tecia histórias com começos, meios e fins, o poeta roubava fragmentos do tempo e os transformava em suspiros. Ele não precisava de tramas ou desfechos; bastava-lhe uma imagem o orvalho na pétala, o vazio de uma rua ao amanhecer para fazer o mundo parar e respirar. O poeta era um alquimista, transformando o banal em ouro com versos que cortavam como lâminas ou abraçavam como um velho amigo.

Naquela noite, o escritor começou a tecer uma história sobre um homem que buscava sentido na vida. Ele descrevia suas andanças por cidades cinzentas, seus encontros com estranhos que deixavam marcas, suas noites de insônia olhando para o teto. Mas a história parecia pesada, como se as palavras se recusassem a voar. Então, o poeta, que sempre espreitava nas sombras, sussurrou: “Deixe-me tentar.” E, com poucas linhas, transformou a angústia do homem em um verso que dizia: “No vazio da noite, ele encontrou estrelas que ninguém mais viu.”

O escritor sorriu, meio invejoso, meio grato. Era assim que eles conviviam, em uma dança de respeito e competição. O escritor construía mundos, tijolo por tijolo, com paciência de artesão. O poeta, por outro lado, era um ladrão de momentos, que pegava o efêmero e o tornava eterno. Um precisava da lógica, da estrutura; o outro vivia do caos, da chispa que acende sem aviso. Juntos, eram invencíveis, capazes de fazer rir, chorar, pensar.

Mas nem tudo eram flores. Havia noites em que o escritor duvidava de cada frase, rasgava páginas inteiras, sentia que suas palavras eram apenas ecos de outros que vieram antes. O poeta, por sua vez, temia que seus versos fossem apenas suspiros perdidos, que ninguém leria ou entenderia. Ambos carregavam o peso de querer dizer algo que importasse, de deixar uma marca em um mundo que corre rápido demais para ouvir.

Naquela sala, porém, eles persistiam. O escritor terminou sua história, e o homem de sua trama encontrou, senão um sentido, ao menos um caminho. O poeta, não satisfeito, escreveu um último verso na margem da página: “E no fim, o sentido era caminhar.” Eles se olharam ou melhor, a mesma alma que habitava ambos se reconheceram e souberam que, apesar de tudo, valia a pena. Porque o escritor e o poeta não eram apenas criadores de palavras; eram guardiões daquilo que nos faz humanos: a capacidade de transformar o indizível em algo que toca, que fica, que vive.

Quando a manhã chegou, a sala estava silenciosa, a xícara de café ainda esquecida. Mas a folha, antes em branco, agora pulsava com vida. O escritor e o poeta, exaustos, sorriram. Eles sabiam que, enquanto houvesse uma história a contar ou um verso a sussurrar, o mundo ainda teria espaço para a beleza.

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