Sacerdotisas do Egito
O antigo poder feminino que falava com os deuses
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Nos templos às margens do Nilo, entre cânticos e incenso, a voz das mulheres se elevava como ponte entre o mundo terreno e o divino. Muito antes de as lutas por igualdade ganharem palco na modernidade, o Egito antigo já abrigava mulheres que exerciam poder espiritual, prestígio social e, em certos períodos, influência política: eram as sacerdotisas.
Diferente de outras civilizações antigas, a religião egípcia concedia às mulheres um espaço visível nos rituais. Desde as servas de deuses locais até as grandes “Esposas do Deus Amon”, essas figuras assumiam papéis de destaque nos cultos.
A mais comum delas era a “Cantora do Deus”, encarregada de entoar hinos sagrados e tocar instrumentos como o sistrum, um chocalho metálico que simbolizava a alegria da deusa Hathor. A música era, para os egípcios, uma forma de convocar o divino — e ninguém o fazia melhor que as sacerdotisas.
Alguns cargos ultrapassavam o âmbito religioso. A título de exemplo, as “Esposas Divinas de Amon”, que floresceram especialmente em Tebas, alcançaram tamanho prestígio que passaram a atuar como figuras políticas. Detentoras de terras e recursos, essas mulheres, muitas vezes de origem real, influenciavam decisões de Estado e serviam como mediadoras entre o faraó e o clero.
No auge do período tardio, ser uma “Esposa do Deus” significava deter mais que fé — significava administrar riqueza, templos e alianças. Era, ao mesmo tempo, devoção e diplomacia.
As sacerdotisas também eram guardiãs da estética do culto. Seus movimentos, cânticos e ritos de purificação eram compreendidos como expressões da própria harmonia do universo (Maat).
Nos templos de Dendera e Filas, dedicados a Hathor e Ísis, relevos mostram mulheres em posição de oferenda, segurando flores de lótus, instrumentos e vasos rituais — imagens que atestam a centralidade feminina na vida espiritual egípcia.
Alguns nomes atravessaram o tempo. Maatkare e Mutemhat, por exemplo, foram “Esposas Divinas” de Amon, sepultadas com honras comparáveis às da realeza. Suas tumbas e inscrições confirmam que o sacerdócio feminino não era mero apêndice do masculino: era instituição, tradição e poder.
Com o declínio dos templos e a expansão do cristianismo, o papel das sacerdotisas desapareceu — mas o legado sobrevive. As antigas mulheres do Nilo deixaram registros que revelam uma civilização capaz de reconhecer no feminino não apenas o mistério, mas também a voz do sagrado.
Em tempos em que a presença da mulher em espaços de liderança ainda é tema de debate, olhar para o Egito antigo é redescobrir que o poder espiritual e político já teve rosto feminino há mais de três milênios.
As sacerdotisas egípcias não apenas serviam aos deuses — elas falavam com eles. E, de alguma forma, suas vozes ainda ecoam nas paredes dos templos que resistem ao tempo, lembrando que fé e poder, quando cantados por mulheres, podem mover impérios inteiros.
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Anabelle Santa’cruz é Editora de Oráculos