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Supremas inspirações!

O CHUVEIRO MÁGICO E O CONTO QUE BATEU ASAS

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Autor/Imagem:
J. Emiliano Cruz - Foto Francisco Filipino

Era o primeiro banho sob o novo chuveiro.

A antiga ducha, desgastada por anos de atividade, já estava jorrando pouca água e limitando significativamente as suas inspirações para novos contos e crônicas.

Os seus melhores textos sempre nasceram com a água molhando a sua cabeça, ganhando contornos lógicos à medida em que o precioso líquido se espalhava pelo restante do corpo.

Metodicamente, logo após o banho, costumava anotar a ideia que nascia molhada no já amarelado caderno de capa preta, presente de um amigo escritor em seu aniversário de quarenta anos.

Entrou confiante no box, abriu o chuveiro e foi tiro e queda.

O conto foi surgindo paulatinamente, ladino, sorridente e luminoso em forma de metalinguagem.

Sim, era brilhante! Como nunca tinha imaginado aquela história antes?

Segurando a ideia pela cauda, logo todo o enredo tomou forma como um quebra-cabeça que vai se encaixando ao natural.

Decorridos mais alguns minutos, achou o desfecho perfeito para a trama.

Extasiado, fechou a torneira e secou-se o mais rapidamente que pode.

Saiu do banheiro feliz e lampeiro cantarolando “O que será?” do grande Chico.

Foi quando olhou a TV que estava ligada na Globonews e viu o ministro Perux começar a proferir o seu voto no julgamento da trama golpista pela primeira turma do Supremo Tribunal Federal.

À medida em que a peroração do ilustre jurista avançava, o ar ficava cada vez mais rarefeito a sua volta. Simplesmente não acreditava no que estava ouvindo.

-Como é que era?

-O julgamento deveria ser anulado?

-Houve cerceamento de defesa?

-O caso teria que ser julgado por um juiz de primeiro grau da comarca de Sobradinho?

-O culpado era o mordomo delator?

-Não havia nenhuma prova contra os réus?

-Ninguém tinha o domínio dos fatos e esses não tinham nenhuma conexão entre si?

Chocado com a narrativa que saía da tela, por um momento chegou a pensar que estava assistindo à adaptação de “As Crônicas de Nárnia” para o cinema.

Após ouvir por algum tempo o impensável e uma gama de contradições desconexas, perplexo e indignado, desligou a TV e sentou na frente do computador para tentar escrever o precioso conto concebido embaixo do chuveiro.

Já imaginando os prêmios que certamente receberia pela obra, sentia-se parcialmente confortado do pesar cívico causado por tudo que acabara de escutar.

Mas…qual era mesmo a história?

Simplesmente havia esquecido!

Lembrava apenas que era uma das melhores tramas já concebidas em sua vida de escritor.

O choque provocado por aquele estranhíssimo voto na TV havia transformado em fumaça não somente o brilhante enredo imaginado para o conto, como também qualquer fragmento da sua ideia nuclear.

Amargurado, tentou concentrar-se e forçar a mente para retroagir ao momento do banho.

Após uma hora de esforço infrutífero, deu-se por vencido.

Praguejando, foi preparar um café na cozinha. Quem sabe isso não turbinaria a sua mente na busca pelo conto fugitivo?

-Por que não anotara imediatamente a síntese da ideia central como sempre fazia?

-Por que tinha que ter deixado a TV ligada… e logo na Globonews?

-Por que um ministro da mais alta corte tinha decidido espancar os fatos e fatiar a Justiça? Para o magistrado, certamente haveria uma resposta firme e adequada por parte dos colegas de toga, mas e para o seu lapso de memória?

-Para onde teria fugido o seu luminoso conto?

Após sorver o seu revigorante café – sua segunda fonte de inspiração – e ainda assim nada lembrar, decidiu compartilhar o ocorrido via whatsapp com a sua querida amiga, pertinaz confidente e fiel parceira literária, a escritora B. Somente ela saberia o que dizer/escrever para consolá-lo daquele amargo infortúnio.

-Então, B., não é mesmo uma desgraça?

-O voto do Perux ou o conto que fugiu?

-As duas coisas!

-Lamento J., essas coisas acontecem! Já vivi essa angústia!

-Do jeito que aconteceu é muito castigo!

-Por supuesto, mas calma, se essa ideia não voltar, logo surge outra que também será sensacional Olha, deixa eu te falar, incrivelmente, o Café Literário acabou de publicar um conto de minha autoria com uma história muito parecida com o que aconteceu com você.

-Como assim? Uma história sobre um escritor que repentinamente esqueceu o conto?

-Isso…e ele também se inspirava durante o banho!

-E por que ele esqueceu a história? Algo em especial?

-A filha dele ligou e avisou que ele seria avô!

-Meus deuses! Que sujeito problemático, hein? Espere aí…lembrei! Essa era a ideia núcleo do meu conto que fugiu!

-Sério? Desculpe, então acho que um pedaço do seu conto voou para o meu teclado antes de pousar no seu chuveiro. Por favor, não me processe por plágio, brincou, B.

-Imagina…rs! Mas isso é mesmo incrível!

-Dá uma lida lá no site, já está com quase cem likes e milhares de visualizações.

-Já vou ler, meus parabéns!

-Obrigada! E sem anistia!

-Por supuesto, agora Inês é morta!

-No caso, Inês seria a anistia ou o seu conto fugitivo?

-Os dois! Hum…acho que tudo isso pode render outro conto premiado. Vou lá tomar mais um banho!

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