Supremas inspirações!
O CHUVEIRO MÁGICO E O CONTO QUE BATEU ASAS
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Era o primeiro banho sob o novo chuveiro.
A antiga ducha, desgastada por anos de atividade, já estava jorrando pouca água e limitando significativamente as suas inspirações para novos contos e crônicas.
Os seus melhores textos sempre nasceram com a água molhando a sua cabeça, ganhando contornos lógicos à medida em que o precioso líquido se espalhava pelo restante do corpo.
Metodicamente, logo após o banho, costumava anotar a ideia que nascia molhada no já amarelado caderno de capa preta, presente de um amigo escritor em seu aniversário de quarenta anos.
Entrou confiante no box, abriu o chuveiro e foi tiro e queda.
O conto foi surgindo paulatinamente, ladino, sorridente e luminoso em forma de metalinguagem.
Sim, era brilhante! Como nunca tinha imaginado aquela história antes?
Segurando a ideia pela cauda, logo todo o enredo tomou forma como um quebra-cabeça que vai se encaixando ao natural.
Decorridos mais alguns minutos, achou o desfecho perfeito para a trama.
Extasiado, fechou a torneira e secou-se o mais rapidamente que pode.
Saiu do banheiro feliz e lampeiro cantarolando “O que será?” do grande Chico.
Foi quando olhou a TV que estava ligada na Globonews e viu o ministro Perux começar a proferir o seu voto no julgamento da trama golpista pela primeira turma do Supremo Tribunal Federal.
À medida em que a peroração do ilustre jurista avançava, o ar ficava cada vez mais rarefeito a sua volta. Simplesmente não acreditava no que estava ouvindo.
-Como é que era?
-O julgamento deveria ser anulado?
-Houve cerceamento de defesa?
-O caso teria que ser julgado por um juiz de primeiro grau da comarca de Sobradinho?
-O culpado era o mordomo delator?
-Não havia nenhuma prova contra os réus?
-Ninguém tinha o domínio dos fatos e esses não tinham nenhuma conexão entre si?
Chocado com a narrativa que saía da tela, por um momento chegou a pensar que estava assistindo à adaptação de “As Crônicas de Nárnia” para o cinema.
Após ouvir por algum tempo o impensável e uma gama de contradições desconexas, perplexo e indignado, desligou a TV e sentou na frente do computador para tentar escrever o precioso conto concebido embaixo do chuveiro.
Já imaginando os prêmios que certamente receberia pela obra, sentia-se parcialmente confortado do pesar cívico causado por tudo que acabara de escutar.
Mas…qual era mesmo a história?
Simplesmente havia esquecido!
Lembrava apenas que era uma das melhores tramas já concebidas em sua vida de escritor.
O choque provocado por aquele estranhíssimo voto na TV havia transformado em fumaça não somente o brilhante enredo imaginado para o conto, como também qualquer fragmento da sua ideia nuclear.
Amargurado, tentou concentrar-se e forçar a mente para retroagir ao momento do banho.
Após uma hora de esforço infrutífero, deu-se por vencido.
Praguejando, foi preparar um café na cozinha. Quem sabe isso não turbinaria a sua mente na busca pelo conto fugitivo?
-Por que não anotara imediatamente a síntese da ideia central como sempre fazia?
-Por que tinha que ter deixado a TV ligada… e logo na Globonews?
-Por que um ministro da mais alta corte tinha decidido espancar os fatos e fatiar a Justiça? Para o magistrado, certamente haveria uma resposta firme e adequada por parte dos colegas de toga, mas e para o seu lapso de memória?
-Para onde teria fugido o seu luminoso conto?
Após sorver o seu revigorante café – sua segunda fonte de inspiração – e ainda assim nada lembrar, decidiu compartilhar o ocorrido via whatsapp com a sua querida amiga, pertinaz confidente e fiel parceira literária, a escritora B. Somente ela saberia o que dizer/escrever para consolá-lo daquele amargo infortúnio.
-Então, B., não é mesmo uma desgraça?
-O voto do Perux ou o conto que fugiu?
-As duas coisas!
-Lamento J., essas coisas acontecem! Já vivi essa angústia!
-Do jeito que aconteceu é muito castigo!
-Por supuesto, mas calma, se essa ideia não voltar, logo surge outra que também será sensacional Olha, deixa eu te falar, incrivelmente, o Café Literário acabou de publicar um conto de minha autoria com uma história muito parecida com o que aconteceu com você.
-Como assim? Uma história sobre um escritor que repentinamente esqueceu o conto?
-Isso…e ele também se inspirava durante o banho!
-E por que ele esqueceu a história? Algo em especial?
-A filha dele ligou e avisou que ele seria avô!
-Meus deuses! Que sujeito problemático, hein? Espere aí…lembrei! Essa era a ideia núcleo do meu conto que fugiu!
-Sério? Desculpe, então acho que um pedaço do seu conto voou para o meu teclado antes de pousar no seu chuveiro. Por favor, não me processe por plágio, brincou, B.
-Imagina…rs! Mas isso é mesmo incrível!
-Dá uma lida lá no site, já está com quase cem likes e milhares de visualizações.
-Já vou ler, meus parabéns!
-Obrigada! E sem anistia!
-Por supuesto, agora Inês é morta!
-No caso, Inês seria a anistia ou o seu conto fugitivo?
-Os dois! Hum…acho que tudo isso pode render outro conto premiado. Vou lá tomar mais um banho!