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Cinema

O índio gay e a questão do não pertencimento

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Autor/Imagem:
Luiz Carlos Merten

Existem momentos de fulgurante beleza em Antes o Tempo não Acabava. Na margem do rio, o garoto indígena grita e não encontra eco. No meio do rio, grita para a floresta – Eu estou aqui.” O longa de Sérgio Andrade e Fábio Baldo passou na Berlinale de 2016 e, depois, no Festival de Brasília e na Mostra do mesmo ano. O tema de Brasília, na curadoria de Eduardo Valente, era a extraterritorialidade, esse sentimento de não pertencer a lugar nenhum. Os filmes de índios talvez tenham sido os que melhor expressaram o tema, e olhem que havia também, em Brasília, O Rifle, de Davi Preto.

Eram o documentário Martírio, de Vincent Carelli, e a ficção da dupla Andrade/Baldo. O documentário, forte, foi recebido com reverência. A ficção provocou polêmica. No debate, uma antropóloga chamou os diretores de irresponsáveis e contestou a autoridade do protagonista, um índio, de falar como tal. Onde o Tempo não Acabava abre-se com um ritual indígena, para marcar o rito de passagem e o ingresso dos meninos na idade adulta. É uma prova de resistência à dor, talvez de coragem. O protagonista não passa. Vira estrangeiro no próprio mundo.

Mas tem mais – Anderson se indispõe contra os seus porque a tribo pratica o infanticídio, e ele não aceita. Dramaturgicamente, o sacrifício da criança sem condições físicas de sobreviver na floresta é um recurso para justificar uma reação do personagem. Foi aqui que a dupla de diretores virou saco de pancada. Existem tribos que praticam o infanticídio no País, mas os casos que vazaram foram midiatizados de um jeito que explorava o tabu. Andrade e Baldo estariam ajudando a condenar os nativo-brasileiros como bárbaros. E ainda não chegamos ao xis da questão – Anderson é atraído por homens. É um índio gay. Seu fracasso no ritual de iniciação dos saterê mawês, a luva das formigas tucandeiras, passa a ter, ou pode ter, outro significado.

Talvez seja coisa demais para um filme só, mas numa entrevista por telefone, de Manaus, os diretores dizem que, em nenhum outro foro – exceto Brasília – encontraram antropólogas(os) tão raivosos contra o filme. Onde o Tempo não Acabava tem sido recebido, e debatido, com outro olhar. Ontem à noite, após a estreia em Manaus, haveria debate com a participação de representantes de diferentes etnias. Do debate, além dos diretores, participaria o ator Anderson Tikuna, que venceu o prêmio de interpretação no Queer Lisboa (e o júri destacou que o filme evita ‘quaisquer estereótipos’). Anderson entrou no personagem sabendo que não seria fácil. Preparou-o Rita Carelli, filha de Vincent, e ela também atua.

O filme nasceu do desejo de Sérgio Andrade de falar sobre os indígenas urbanos, que abandonaram ou foram expulsos de suas terras e vivem na periferia de Manaus. “Anderson é um personagem complexo, mas é real. Ser gay pode ser um complicador para algumas plateias, mas a homossexualidade, embora presente, não é o tema. Nosso tema é a afirmação da identidade”, define Fábio Baldo.

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