Zap com Tolentino
O martelo, a foice e o carimbo da censura
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Foi outro dia — desses em que a conversa começa leve, mas termina pesada — que eu e Fernando Tolentino, veterano das trincheiras do jornalismo, trocávamos impressões sobre o novo cerco à liberdade de expressão.
Éramos dois ex-combatentes de redação, hoje com os cabelos mais brancos que os prateados das mesas de edição.
As mensagens pingavam no WhatsApp, essa nova forma de bilhete cifrado dos tempos modernos.
Tolentino, sempre com aquele humor que tempera o amargor, escreveu:
— Eu saíra, com o Francisco Gualberto, nosso amigo fotógrafo, para cobrir uma pauta surreal: um duelo.
— Duelo? — retruquei.
— Duelo, sim, meu caro. Com dia, hora e local marcados. Aconteceria na praça central de Valparaíso. Faroeste a 50 km de Brasília. Pauta da editoria de cidade do Correio Braziliense.
Ri. O absurdo era parte da rotina. Mas a história virava mais curiosa.
Tolentino prosseguiu:
— A pauta furou. Talvez a única frustrada da minha passagem pelo jornal. Mas na volta, Gualberto avistou uma cena insólita: operários ultimando os detalhes do Memorial dos Povos Indígenas, coladinha no Memorial JK. A obra fora destravada numa audiência de Dona Sarah com o general-presidente Figueiredo, costurada por ninguém menos que Sílvio Caldas.
— Sílvio Caldas?! O cantor?
— O próprio. O trovador serviu de ponte entre o poder e a arte. E foi assim que se venceu a resistência dos fardados mais exaltados, aqueles que viam em Niemeyer, o arquiteto comunista, uma ameaça de concreto armado.
Tolentino riu, mas o riso veio amargo:
— Diziam que a torre projetava, sobre o Setor Militar Urbano, a sombra da foice e do martelo.
O que veio depois, contou-me como quem revira uma ferida antiga:
— Paramos a kombi, Gualberto saltou, enquadrou e clicou. O operário, de martelo na mão, diante da torre curvada. O símbolo comunista estava ali, desenhado pelo acaso e pelo sol.
Era capa. Não havia dúvida. A perfeita combinação da arte com a paranoia.
Mas, como toda boa história de jornal em tempos de chumbo, o final foi previsível:
— No dia seguinte, Gualberto passou pela minha mesa. O olhar dizia tudo. “Não vai ser publicada”, murmurou.
Tolentino suspirou, digitando como quem revive:
— “Mas, se quiser, faço uma cópia pra você.”
Claro que quis. Mandou emoldurar a foto. Orgulhoso da pequena insubordinação doméstica, pendurou-a na parede do escritório. Só percebeu um detalhe tarde demais: o autor esquecera de assinar.
Décadas depois, rastreou Gualberto, que ainda respirava o cheiro de revelador e acetona. Pediu o autógrafo.
“Agora sim”, disse. “A foto e a censura, juntas, autênticas.”
Tolentino encerrou o relato com uma pergunta que ficou vibrando na tela, sem resposta:
— Sentiu a força que tem a censura pra mim?
Sim, senti. Porque a censura nunca morre — ela apenas troca de uniforme.
Antes vinha de coturno; hoje, veste toga, jaleco, gravata, crachá corporativo ou codinome digital. Continua decidindo o que pode ser dito, visto, sentido.
E nós, jornalistas, seguimos tentando furar o bloqueio, mesmo sabendo que o próximo “não vai ser publicado” já está a caminho.
No fim, o que resta é o mesmo retrato pendurado na parede da memória — o operário, o martelo, a torre, a sombra da foice — e a eterna pergunta de Tolentino:
Será que algum dia publicaremos, sem medo, a verdade inteira?
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José Seabra é diretor da Sucursal Regional Nordeste de Notibras