Anjinha delirante
O pobre Geraldo tinha apenas saído para jogar conversa fora com dois amigos
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Greta era um poço de ciúme. Não um poço apenas; um poço artesiano de ciúme. A mínima pressão, real ou imaginária, e o líquido gosmento jorrava, impetuoso, inundando o relacionamento dela com Geraldo.
Bastava, por exemplo, que ela o flagrasse navegando depois das 11 da noite em uma rede social para teclar, furiosa:
– Cachorro sem vergonha! Ainda não dormiu? Com certeza está fazendo coisinhas pela internet com aquelas vadias! E eu sofrendo por você, ingrato…
Outro traço característico de Greta era a sua imaginação delirante. O “com certeza” dela estava quase sempre errado. Mil vezes ela havia teclado coisas assim:
– Você saiu ontem à noite. [Aí começava o delírio] Com certeza foi ver sua amada [ou ex-mulher, tanto fazia]. Fique [volte] com ela, não aguento mais!
E o pobre do Geraldo tinha apenas saído para jantar e jogar conversa fora com dois amigos…
Parte disso, ele reconhecia, era culpa sua. Os dois conheceram-se no Face e engataram um namorinho virtual. Mas o tempo passa, a libido foi dar uma voltinha e não voltou mais… normal, ele estava com 79 anos. Greta, porém, aos 76 anos, imaginava sempre que ele estava fazendo coisinhas por aí, com qualquer uma, menos com ela. Então, trocava o “meu rei” costumeiro (era baiana), pelo cachorro sem vergonha. E, nove vezes em dez, ele era inocente, estava apenas entregue a sua paixão: escrever contos (a décima vez, melhor não comentar, digo apenas que libido em baixa não afeta a imaginação do vivente).
Certa noite, quando se preparava para dormir, a inspiração bateu. Levantou-se, tomou um café, correu para o computador e escreveu um conto baseado em um tango clássico. Como fazia sempre, enviou-o para Greta, postou-o em seu perfil, em seus grupos literários, e foi pra cama, feliz como um pinto no lixo.
E aí deu chabu.
Na noite seguinte, deparou-se com uma mensagem indignada da “rainha” era como a chamava, retribuição pelo “meu rei”):
– Cachorro sem vergonha, você ainda ama essa mulher, sempre amou, e ainda manda conto falando de vocês, sabendo que gosto de você, isso é demais, é querer me humilhar! Faz favor, nunca mais me chame de “minha rainha”, ela sim foi sua rainha, ou continua sendo no seu coração. E não venha me dizer que é apenas um conto!
Dessa vez Geraldo se encheu de indignação. Não tinha culpa de gostar de tangos, de gostar de escrever contos, de a Argentina ser a pátria do tango, de ter tido uma namorada daqueles pagos. Ligou pra Greta e soltou os cachorros. Ela soltou de volta. Os dois velhinhos ficaram se xingando, espumando de ódio, até que o coração não resistiu e bateram as botas quase no mesmo momento.
Geraldo morreu primeiro, chegou primeiro no céu. Vestiu uma camisolinha de aprendiz de anjo e ficou aguardando Greta. Escondeu-se atrás de uma nuvem para surpreendê-la.
Ela chegou, esbaforida, pouco depois. Nem teve tempo de vestir a camisolinha de aprendiz de anja; olhou em redor, não viu Geraldo, e explodiu:
– Ele não tá aqui. Claro, cachorro sem vergonha, sem dúvida foi direto lá pra baixo. Sorte dele, se eu o encontrasse, ia dizer-lhe onde enfiar contos de amor para uma perua argentina!
Desiludido, o vestibulando de anjo percebeu que nem a morte, a estadia no céu, ia tornar razoável a anjinha delirante. E afastou-se em silêncio, cabisbaixo, por toda a eternidade.