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Dias piores virão. Ou não

O quanto o pessimismo pode nos paralisar diante da vida

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Autor/Imagem:
Sara Farid

Frente à descrença total, tudo indica que temos opções para fazer surgir dias melhores.
Em uma entrevista à rádio pública sueca Studio Ett, em 2016, uma ouvinte descreveu a situação do mundo como “desgraça e desolação por toda parte”.

Difícil discordar dela com a maior crise de refugiados da História, ataques terroristas frequentes, fome, assassinatos, crimes impunes, enchentes, aquecimento global, intolerância tomada como política pública, enfraquecimento de democracias e falta de confiança nos próprios representantes.

Pouco antes de morrer, aos 90 anos, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, notório por seus conceitos de modernidade líquida e amor líquido, transformou suas conversas com o jornalista e escritor italiano Ezio Mauro no livro Babel: Entre a Incerteza e a Esperança (Zahar). Com um olhar crítico sobre as relações humanas, ele descreve uma situação bastante familiar para nós brasileiros:

“Cada vez menos os eleitores confiam nas promessas feitas pelas pessoas que elegem para governar; amargamente descrentes por causa das promessas não cumpridas do passado, os eleitores não chegam a esperar que desta vez as promessas sejam cumpridas. Com frequência cada vez maior, os eleitores apenas procedem mecanicamente – mais guiados por seus hábitos adquiridos que por alguma esperança de mudança para melhor ensejada pelo seu voto. Na melhor das hipóteses, eles vão às cabines eleitorais para escolher males menores.”

O diálogo prossegue com Mauro, que endossa a observação de Bauman:

“As pessoas não votam mais, ou o fazem com indiferença, sem paixão ou pelo menos sem muita convicção; elas não acreditam no direito de votar como o meio mais efetivo de recompensar, punir e escolher.”

As afirmações de Bauman e Mauro são globais, mas encontram ressonância particular nos lares brasileiros: junto com os espanhóis e os franceses, somos o povo que menos confia em políticos, segundo uma pesquisa da organização GfK Verein, feita em 27 países. Bombardeados diariamente com denúncias de corrupção e de esquemas fraudulentos, é difícil esperar uma atitude perseverante. A resposta a isso, muitas das vezes, tem sido o asco, a melancolia e o afastamento de tudo que envolva política.

Professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP e doutor em Filosofia pela Universidade de Paris VIII, Vladimir Safatle chama a atenção para os efeitos da melancolia fomentada por aqueles que estão no poder. A reflexão, feita durante uma participação no programa Café Filosófico, produzido pelo Instituto CPFL, parte do conceito freudiano estabelecido no texto Luto e Melancolia (1915), no qual a melancolia é caracterizada por “um desânimo profundamente doloroso, uma suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e um rebaixamento do sentimento de autoestima, que se expressa em autorrecriminações e autoinsultos, chegando até à expectativa delirante de punição.”

Em vez da reação a uma pessoa amada que se foi, poderíamos pensar na melancolia por um ideal perdido, argumenta Safatle.

“Falar que o poder nos melancoliza significa dizer que um dos eixos fundamentais de sustentação do poder é a produção e a lembrança contínuas do nosso vínculo a um ideal, a uma promessa que se perdeu. A fala pública das pessoas melancólicas é uma resignação contínua. ‘Tentamos tanto e deu tudo tão errado’. ‘Acreditamos tanto e olha só o que aconteceu’. ‘Investimos tanto e o resultado foi tão pouco’.”

Enquanto alguns diriam que essas frases são realistas ou fruto da sabedoria de quem leva em conta os fatos como eles são, Safatle afirma que são apenas melancolia. E ela alimenta o medo da mudança por um povo.

“Ninguém pede para você ter uma convicção. Em vez disso, pede para você ter uma rejeição e um medo a qualquer outra alternativa porque ela é considerada como ruim. Não é que a que você tem seja boa – é que as outras são ruins. Ninguém pede para você acreditar que as normas da nossa sociedade sejam justas. Pede para você imaginar que qualquer mudança será pior do que o que se tem.”

Segundo o professor de Filosofia, com a melancolia produzida e explorada pelo poder, os sujeitos se veem marcados pela impotência e pela paralisia, cuja função fundamental é bloquear toda e qualquer imaginação política. Ele cita como exemplo o desencantamento em nossa época, apurado por pesquisas em que boa parte da população mundial diz acreditar que a vida dos seus filhos vai ser pior do que a vida que eles tiveram.

“É nessa paralisia que o processo de poder se garante. A imaginação é capaz de produzir situações ainda impossíveis. Mas tem certas épocas em que toda uma população entra em paralisia e perde a crença na sua própria imaginação, na sua própria capacidade de produzir saídas e alternativas. E a pergunta é se nós no Brasil não estamos de fato entrando em uma era melancólica, em que a experiência da imaginação política é colocada em questão porque o próprio campo da política é colocado em questão.”

De acordo com Safatle, o afastamento dos cidadãos do campo da política se reflete em posturas individuais, com pessoas se engajando menos na vida social e com a impressão de que nenhuma transformação é possível.

“Há um interesse em fazer com que as pessoas acreditem nisso e se desengajem, porque o Estado não desaparece, nem sua força policial, ou sua classe política. Continuam lá. Mas aí ninguém mais olha para esse espaço como um espaço que lhe implique também.”

Esse sumiço de tudo que tenha a ver com política parece vir bem a calhar para cada um de nós, já que “ninguém presta”. Quem nunca se cansou das notícias de roubos e conchavos para o enriquecimento ilícito? Conversas pessoais ou opiniões compartilhadas via redes sociais transmitem o recado de um cansaço bastante melancólico. Mas a professora de Filosofia Marcia Tiburi destaca o problema desse distanciamento em seu livro Ridículo Político (Editora Record):

“Há quem esqueça que o todo da vida é político. Precisamos saber que política é o todo da vida porque não se vive a vida humana como indivíduo ou espécie sem que estejamos relacionados uns aos outros e, inevitavelmente, às instituições.”

Em outras palavras, por sermos seres dependentes de relações humanas, a política é essencial para nossa vida. A reunião de condomínio, a fila da padaria, a troca de conselhos são uma vida política. Ao enfatizar a importância da persistência e evocar a criatividade, Tiburi parece corroborar com a defesa da imaginação proposta por Safatle.

“Impotentes diante da deturpação da política, dominados e enganados pela administração astuciosa da aparência, uns se ressentem, deprimem, tentam adequar-se, enquanto outros se aproveitam. Inevitavelmente, precisamos nos perguntar como sairemos disso, como desmancharemos esse processo, como desmontaremos o dispositivo estético-político da publicidade política. Sabemos que é preciso pensar, que é preciso refletir, que é preciso produzir outras narrativas capazes de recriar o mundo das subjetividades autônomas e libertárias.”

É na esteira do pessimismo e de discursos fatalistas – “o mundo não tem mais jeito” – que crescem algumas das retóricas mais intolerantes e excludentes, alerta o documentarista sueco Johan Norberg, autor do livro Progresso (Editora Record), lançado no Brasil este ano.

“Essas percepções alimentam o medo e a nostalgia sobre os quais Donald Trump construiu sua campanha à presidência dos Estados Unidos. Em um referendo recente, 58% dos que votaram pela saída da Grã-Bretanha da União Europeia disseram achar que a vida está pior hoje do que há 30 anos.”

Norberg tomou para si o desafio de escrever um livro otimista, no qual utiliza dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), do Banco Mundial, da OMS (Organização Mundial da Saúde, da OIT (Organização Internacional do Trabalho) para mostrar que nunca na História fizemos tanto progresso quanto nos últimos 100 anos. O sueco compara informações e relatórios sobre alimentação, saneamento, expectativa de vida, pobreza, violência, meio ambiente, alfabetização, liberdade e igualdade, enfatizando este progresso como fruto do engajamento de muitas pessoas, de maneiras diferentes.

“Calma aí”, parece dizer Norberg. Sob o véu do pessimismo, dificilmente enxergamos este progresso compilado por ele. Nossas teorias sobre o quanto o mundo está acabando seriam produtos de nossa ignorância ou hipóteses baseadas em informações incorretas e desatualizadas? Para ele, são hipóteses muitas vezes formadas pela mídia, que reforça uma maneira particular de olhar o mundo ao focar no que é dramaticamente surpreendente, como más notícias, guerras, assassinatos e desastres naturais.

“A despeito do que ouvimos nos telejornais e de muitas autoridades, a grande história de nossa era é que estamos testemunhando o maior aumento nos padrões de vida global de que já se teve notícia. Pobreza, desnutrição, analfabetismo, trabalho infantil e mortalidade neonatal decrescem mais rapidamente do que em qualquer outro período da história humana. Em relação ao século passado, a expectativa de vida no nascimento aumentou duas vezes mais do que nos 200 mil anos anteriores. O risco de que um indivíduo seja exposto à guerra, submetido à ditadura ou morra em um desastre natural é o menor de todos os tempos. Uma criança nascida hoje tem mais chance de chegar à aposentadoria que seus antepassados tinham de completar 5 anos de idade.”

Imaginação, criatividade, conhecimento. Frente à descrença total, tudo indica que temos opções para fazer surgir dias melhores.

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