Fingir
O que eu escondia por força da timidez
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Eu sempre escondi tudo. Escondia que escrevia, escondia que sofria, escondia até de mim. Era tímida, reservada, treinada para não incomodar, para não expor. Não podia sofrer em voz alta. Lembro das vezes em que queria gritar e meu passado sussurrava: “finge”.
Eu precisava fingir. Fingir que estava bem, fingir que era forte, fingir que nada me doía. O silêncio era a minha armadura; o sorriso, meu disfarce. Era como se a dor fosse um segredo sujo que eu deveria guardar no fundo de uma gaveta. Eu obedecia. Me sentia culpada até pelo que eu não causava.
Lembro dele. Lembro de quando eu não entendia por que ele me pedia para fingir. Ele sabia onde doía, sabia dos meus cantos quebrados. Por que, então, me pedia isso? Por que o cuidado vinha sempre mascarado de exigência? Hoje, com um olhar mais distante, eu entendo: ele também era prisioneiro das próprias dores e medos, ele também aprendeu a fingir. Talvez tenha tentado me ensinar o que aprendeu. Talvez só não soubesse outro jeito.
E é aqui que mora a ironia. Depois de uma vida inteira escondendo minhas dores, recebo um diagnóstico visível muito visível. Parkinson. Agora não tenho como esconder. Meu corpo treme, minhas mãos sacodem sem pedir licença. Às vezes engasgo ao comer, tropeço no meio do caminho, sinto rigidez nos músculos, lentidão nos movimentos, dificuldade para escrever, uma voz que às vezes falha. Tento disfarçar, ajeitar, controlar, mas o corpo não deixa. O corpo me expõe, e nessa exposição não há mais espaço para o fingimento.
Mas, de repente, percebo: talvez isso seja uma libertação. Se não posso mais esconder, também posso ajudar. Posso ser uma presença para outras pessoas que, como eu, tentam viver com dignidade, mesmo quando o corpo insiste em revelar aquilo que o coração quis esconder por tanto tempo.
Escrever, agora, já não é só um alívio: é um ato de solidariedade. Cada frase que coloco no papel é um gesto que diz a quem lê: “você não está sozinho”.
No fundo, talvez essa seja a maior virada. Eu, que sempre fingi, agora aprendo a ser humana de verdade: vulnerável, exposta, sentindo. E sendo assim, posso devagar recomeçar. Não é um recomeço rápido nem perfeito. É um passo por vez, um gesto por vez, uma palavra por vez.
Ser humano, no fim, é isso: aprender a se levantar com os próprios tremores, aceitar que tropeços fazem parte, respirar fundo no meio do engasgo e continuar. Devagar, mas continuar.