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Os irmãos (Capítulo IV)

O retorno à Corte, maquinações e desejos

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Autor/Imagem:
Daniel Marchi - Foto Francisco Filipino

O trem, de ferro e fumaça, levou Eurico de regresso ao coração da Corte como quem conduz um gladiador ferido ao anfiteatro. No caminho, os jornais já faziam o serviço: manchetes berravam nas bancas da Rua do Ouvidor: Testamento revolucionário no Vale do Parahyba: coronel liberta escravos e reconhece filho natural.

Nos cafés apinhados, discutia-se como se fosse batalha campal. De um lado, os senhores de escravos bradavam contra a “subversão jurídica” que ameaçava dissolver a ordem social. De outro, os jovens abolicionistas e republicanos, inflamados pelos versos de Castro Alves e pelos artigos de José do Patrocínio — viera o ano de 1880 e o aguerrido jornalista ocupara a tribuna do Teatro São Luiz para pôr em cheque a escravidão — viam no caso Antunes a centelha de uma revolução mais ampla: se um coronel podia romper o grilhão com a pena, por que não o Império inteiro?

Eurico, instalado num sobrado modesto, de janelas sujas, corria aos gabinetes de advogados célebres. Encontrou acolhida no Dr. Álvaro Sampaio, jurisconsulto de barba cerrada e verbo afiado, conhecido por defender causas dos barões do café. Passavam horas sobre as leis civis, jurisprudência e os compêndios de sucessões.

— Vede, meu jovem — dizia o advogado, apontando o artigo com o indicador manchado de tinta — o testamento cerrado é frágil como papel molhado. Basta insinuar que houve coação, ou que a febre lhe turvou o juízo, e teremos o nulo declarado.

O filho legítimo, ressentido e traído, esperava a anulação. Reverteria a alforria e venderia Sabina para os rincões da província da Bahia. Haveria de vingar-se, subjugando o irmão mais velho. Sorria, já saboreando a vitória.

Mas, nas sombras das tipografias e nos corredores do parlamento, outros advogados se moviam. Joaquim Nabuco, André Rebouças, Rui Barbosa, nomes que então se confundiam com o próprio futuro da nação, enxergavam no documento do Coronel um estandarte.

Nabuco discursava:

— Não se trata de um simples pleito familiar. É a luta de dois Brasis: o Brasil das senzalas libertas e o Brasil dos salões que ainda cheiram a mofo e sangue.

Após batalha jurídica nas instâncias ordinárias, a causa foi recebida no Supremo Tribunal de Justiça como se fosse questão de Estado. Os juízes sentaram-se em silêncio solene, mas por trás da neutralidade da toga pesavam as pressões de fazendeiros, diplomatas, bispos, jornalistas. O salão estava cheio: damas de leque, estudantes exaltados, libertos de olhar desconfiado, senhores de bigodes encerados.

O advogado de Eurico foi o primeiro a falar. Ergueu a voz, inflou o peito, e sua oratória caiu sobre o recinto como artilharia de chumbo:

— Excelências, a pátria está em perigo. Um testamento forjado à sombra da feitiçaria não pode subverter séculos de lei e de ordem. O Coronel, febril e delirante, jamais poderia dispor de seus bens a favor de um escravo, ainda que metade!

A ala conservadora explodiu em palmas e vivas. O juiz presidente advertiu.

— Silêncio! Silêncio!

Mas quando o próprio Joaquim Nabuco, contratado por Erasmo, tomou a palavra, a atmosfera mudou. Sua voz clara, vibrante, cortou a sala:

— Dizem que a lei não admite a igualdade entre os homens. Pois eu vos pergunto: a lei é feita para negar a justiça, ou para realizá-la? O Coronel Francisco Antunes, em sua última hora, fez o que muitos não ousaram fazer em vida, reconheceu no filho da escrava o mesmo sangue que corria em suas próprias veias. Negar isso seria negar não só a lei escrita, mas a própria lei de Deus.

Metade da sala aplaudiu de pé. A outra metade vaiou com fúria. Debalde eram os esforços do presidente, com o malhete de prata, para conter o tumulto.

Erasmo, sentado no fundo, mantinha os olhos atentos, com destemido olhar que podia ser confundido com altivez, mas era de confiança na justiça. No fundo, entretanto, temia, porque sabia que não era apenas sua vida que estava em jogo: era o destino de dezenas de famílias libertas, e, mais além, o sinal de um Brasil que, caminhando para 1888, oscilava entre a sombra e a claridade.

Quando a sessão foi suspensa, a multidão explodiu na rua em debates e brados. Eurico saiu cercado de aliados, prometendo não se dobrar. Erasmo, silencioso, atravessou a noite da Corte com passos firmes e coração em tormenta, sabendo que os dias seguintes lhe trariam não apenas um veredito, mas o peso de uma história que já não era apenas sua, mas da nação inteira.

O dia da decisão amanheceu com sol batendo em chapa sobre o Município Neutro da Corte. As ruas fervilhavam antes mesmo do toque do sino das nove. Estudantes de capa preta agitavam jornais; abolicionistas carregavam panfletos impressos à noite nas tipografias clandestinas; aristocratas cochichavam, divididos entre curiosidade e escândalo.

No Supremo Tribunal de Justiça, o salão estava tomado. Damas perfumadas, jornalistas de caderneta, senhores de fazenda e libertos vindos da província, todos esperavam, como se fosse missa maior, o pronunciamento final.

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O Epílogo deste folhetim será publicado na sexta-feira, 26.

Daniel Marchi (@prof.danielmarchi) é editor-executivo de Notibras.com, onde, com Eduardo Martínez e Cecília Baumann, comanda o Café Literário. Carioca, é advogado e professor. Poeta, escreveu os livros “A Verdade nos Seres” e “Território do Sonho” (no prelo).

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