Cumplicidade
O silêncio do mundo diante da dor numa roda que não para de girar
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Há dias em que o mundo parece uma máquina de lavar roupa em ciclo eterno. Gira, gira, gira… e não para, mesmo quando do lado de fora alguém está sangrando. A vida, com seus compromissos inadiáveis, boletos automáticos e stories patrocinados, continua. Mas há um ruído incômodo nesse funcionamento todo: o silêncio.
Foi no mesmo fim de semana em que Mujica nos deixou em forma de saudade e legado, que um ataque foi frustrado num show da Lady Gaga, enquanto crianças refugiadas, de olhos imensos e bocas caladas, buscavam algum canto do mundo que as aceitasse como se fossem humanas. No Complexo da Maré, o tiroteio foi a trilha sonora do café da manhã de uma mãe que, entre balas perdidas e esperanças minguadas, insistia em colocar açúcar no café como quem adoça a vida à força.
E o mundo? Girando.
Como se o luto de um ex-presidente filósofo e camponês não dissesse nada. Como se o som de tiros no subúrbio carioca fosse parte da paisagem sonora da cidade. Como se o pânico evitado num show pop fosse só mais uma linha de rodapé nos noticiários. Como se a dor de quem foge da guerra fosse menos urgente do que o preço da gasolina.
A empatia, essa palavra bonita que aprendemos a dizer no Instagram, é seletiva. O sofrimento, quando não é nosso ou de alguém parecido conosco, ganha o status de “problema alheio”. A antropologia já nos ensinou que nos mobilizamos mais por quem identificamos como “nós” do que por quem chamamos, consciente ou inconscientemente, de “outros”. E o “outro”, historicamente, sempre foi o lugar da invisibilidade, da dor ignorada, do lamento que não encontra ouvidos.
É curioso ou trágico que o mesmo mundo que faz barulho por tudo, silencie diante daquilo que mais grita: a dor. E não qualquer dor. A dor do pobre, do preto, do refugiado, do periférico, do estrangeiro, do corpo que não habita os centros de decisão e privilégio.
O silêncio do mundo é cúmplice.
Mas ele não é absoluto. Porque há quem escreva. Há quem resista com palavras, com arte, com memória. Há quem faça da crônica um grito, da poesia um protesto. Há quem decida não passar batido pelas dores dos outros. Porque, no fundo, sabemos: o mundo gira, sim, mas ele também chora. E às vezes, tudo que ele precisa é que alguém tenha a coragem de
escutar.