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Dia a dia

O tempo que treme, não para, só correria

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Autor/Imagem:
Emanuelle Nascimento - Foto Francisco Filipino

Engraçado as voltas que a vida dá. Hoje saí do serviço e sentei na praça não porque precisava apreciar a vista, mas porque a minha perna tremia, meu braço não obedecia ao meu cérebro. Há pouco mais de um ano isso me apavorou; tive que lidar com depressão, com a separação, com o medo de não poder dizer ao outro que, naquele momento, eu não aguentava mais, porque talvez ele achasse chantagem emocional. E eu aguentei. Aguentei de todas as formas possíveis.

Viver com Parkinson é aprender devagar a escutar o próprio tempo. Não é que o relógio tenha parado é que ele mudou o compasso. Um dedo que não obedece, uma xícara que treme, um abraço que chega atrasado ao corpo: são pequenos desacordes que ensinam a atenção. No começo vem o espanto; depois, uma tradução da vida em rituais e cuidados. O banho, a roupa, o café, gestos antes automáticos, agora viram escolhas conscientes. Cada passo vira decisão; cada colherada, vitória.

Há uma solidão que bate primeiro, tímida, porque ninguém ensina a segurar uma notícia assim. Colecionamos perguntas sem respostas prontas: o que sobra do que eu era? Onde encaixo os planos? Como fazer com que o outro não veja só o tremor, mas continue a ver a pessoa inteira? No meio dessas perguntas, acontece uma surpresa: uma escola de atenção. As manhãs ganham um novo brilho. O sapato preso, o fio de cabelo que se ajeita, a luz da janela, tudo passa a valer mais.

A rotina se transforma em mapa de possíveis. Há dias em que caminho cem metros sem parar; dias em que a mão não treme quando abraço; dias em que rio alto. Essas pequenas vitórias se acumulam como moedas raras. E há dias de revolta, dias em que o corpo parece uma traição e a tristeza um cobertor pesado. Nesses dias, cabe permitir-se: chorar, xingar, desistir por um momento. O recomeço não é linha reta; é caminho com curvas, socos e devoluções.

Amar e ser amado nesse cenário tem sua própria poesia e seus espinhos. Aprender a segurar a mão de quem treme não é condescendência, é companhia. É rir de uma piada mesmo quando a fala falha; é entender que pressa deixou de ser virtude. Dói também: amar quem foi porto e agora é mar noutras marés exige luto e negociação diária. Mas o amor que permanece, mudado, prova-se flexível e profundo.

O corpo que muda exige que a mente e o coração se reinventem. Surgem modos novos de expressão: um desenho, uma música, um texto, uma conversa prolongada. O tempo que antes era consumido por pressa se abre para pequenos prazeres um livro concluído, a música que embala a tarde, o sol que parece mais claro. A vida, ainda que curta, ganha densidade. Curta não é sinônimo de vazia; muitas vezes é uma vida concentrada, intensa de um jeito que anos longos e dispersos não conseguem ser.

E quando acordo sozinha e sinto que o corpo não me obedece, às vezes já não choro, eu respiro. Digo a mim mesma: hoje tô parando. Mas amanhã eu corro. Virou mantra. E mantra salva vidas.

Há beleza nas redes que se formam: um médico que escuta, um amigo que aparece, uma conversa que reduz o medo. Compartilhar a beleza e o cansaço enfraquece o peso. A dignidade mora nas escolhas simples, na coragem de pedir ajuda sem vergonha, no gesto humilde de aceitar limites.

Viver com Parkinson é celebrar o tempo que resta com presença não para negar a dor, mas para mostrar que ainda há afeto, riso e beleza. Que cada manhã seja um recomeço honesto e gentil. Que a vida, mesmo encurtada, seja inteira.

Hoje eu paro. Amanhã eu corro.

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