Como fica o leitor nessa história?
O trinômio narrador-personagem-narratário
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Ao perguntarmos quem é o ser que narra uma história escrita, a resposta óbvia é dizer que é um “eu” que o faz. No entanto, identificar as representações envolvidas num determinado contexto narrativo demanda um esforço de análise. A narrativa em primeira pessoa é algo inerente à organização cognitiva infantil operacionalmente concreta. No entanto, a narrativa em primeira pessoa, para efeitos da análise do texto literário contemporâneo, demanda abstrações em torno da diferenciação ou não entre autor e narrador.
A perspectiva do narrador personagem é de dentro da história. Participa de seu enredo como protagonista ou coadjuvante, usando os pronomes ‒ eu ou nós ‒ para narrar.
Quando um autor publica um texto narrativo usando o pronome eu, ocorre dos leitores suspeitarem de que a história é verídica. Se a temática é contemporânea e se o narrador é onisciente, isso fará o leitor supor que o texto é autobiográfico. O viés recorrente é a leitura de mundo que os autores expressam na construção da ficção sob a própria percepção do momento social. Ora, o que é vivido coletivamente no cotidiano é chamado de realidade. No entanto, a narrativa representa a realidade, não sendo idêntica a ela.
É contemporâneo pressupor que o lugar narrativo (de onde e de quem parte a história narrada) é mais apelativo do que o conteúdo anedótico daquilo que é exposto, descrito, narrado. Atualmente livros de autoajuda se tornam “best sellers” e seus autores se destacam em modalidades sócio profissionais diferentes da de escritor. Ou seja, autor e narrador se fundem de tal forma a confundir o aprendiz de literatura na distinção entre ambos.
Quando exponho um texto narrativo de minha autoria, usando o pronome eu, ocorre dos ouvintes perguntarem se é verídica. A distinção entre os papéis de autora e o de narradora é construída no texto de forma revelar se a diferenciação é válida ou se, ao contrário, se trata de uma narrativa autobiográfica.
A terceira opção é criar um narrador com condições para construir uma narrativa que instale essa dúvida no leitor, fazendo disso material estético. Na literatura brasileira do século XIX, a apóstrofe “caro leitor”, marca do contista brasileiro Machado de Assis, configura a existência de um narratário ou substituto do leitor no próprio texto. Esse complementar do narrador – típico dos romancistas vitorianos – é um “artifício retórico, uma forma de controlar e complicar as respostas do leitor real, que permanece fora do texto.” (LODGE, David. A Arte da Ficção. Trad. Bras. Porto Alegre: L& PM Pocket, 2011. P. 90).
Tal foco narrativo enriqueceria as possibilidades de o texto dialogar com o leitor? O jogo texto e leitor (criado pelo autor) facultaria o diálogo entre a díade: narrador – leitor? Esse narrador – personagem – narratário espelharia o culto à própria imagem e aos valores estabelecidos culturalmente? Ou envolveria forças diferentes em confronto e que gerariam conflito e seus desdobramentos narrativos?
Para o trinômio narrador-personagem-narratário, destaco a questão: a narrativa envolve duas individualidades conscientes de sua distinção num ato de comunicação escrita? Ou o narrador e o leitor se diluem, derrocando o protagonismo e a identificação?
O protagonismo difere do estado de meras identificações e galga o patamar da identidade. O termo protagonista origina-se da tragédia grega e tem como sentido etimológico o primeiro combatente, ou seja, o herói possuidor de características humanas e divinas que luta contra o destino (desígnios dos deuses), por meio da vontade própria e do ato espontâneo.
O termo espontaneidade, utilizado por Moreno, tem sua raiz etimológica em sponte, que vem a ser vontade própria. Moreno resgatou o sentido mítico-trágico para o filosófico científico do herói que é porta-voz da raça humana. O protagonismo é a condensação inconsciente dos desejos da coletividade, ou seja, tem sua origem num inconsciente compartilhado, formado por histórias plurais e pré-histórias múltiplas.
O estado de espontaneidade depende da capacidade de inverter papeis: é relacional e dialógico, possibilita o encontro consigo mesmo e com o outro. O encontro é algo atual: um evento que acontece na presença, na relação.
No caso da literatura, o encontro se dá entre leitor e texto. A relação entre ambos abre a possibilidade da latência e possibilita um encontro dialógico sempre novo. Frente às considerações anteriores e retomando a questão inicial aventada – quem é o ser que narra uma história escrita? – concluo que o autor de uma narrativa literária dialógica cria, no momento de sua elaboração, um ser narrativo potencialmente provedor de protagonismo, de espontaneidade, de diálogo, de identidade. Em oposição, há outras narrativas escritas que se isentam daquele compromisso e permanecem monológicas.
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Edna Domenica – DE QUE SÃO FEITAS AS HISTÓRIAS – 2014 – Pp 89-92 – (ISBN 978-85-62598-36-4)