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Cruzeiro

Oboé sai do tom, desafina violino, e cuíca e pandeiro põem ritmo na orquestra

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção Irene Araújo

Aureliano, minucioso que era, ficava irritado com qualquer nota fora do compasso, ainda mais porque, quase sempre, tirava o brilho do oboé, justamente o instrumento que tocava na orquestra sinfônica. O sujeito era tomado por tamanho ódio, que parecia surdo a partir de então.

— Aureliano, algum problema?

— Margô, você não viu?

— Viu o quê?

— O trompete atrasou e foi atropelado pelo trombone.

Margô, a maestrina, talvez para não provocar pendenga entre os músicos, fingia desconhecimento da falha levantada pelo colega. Este, por sua vez, não raro, enrugava ainda mais a testa, como se fossem quebra-molas na vastidão do Saara, que tomava conta da sua racionalidade, que se tornava nenhuma. Paciência, realmente, não era seu forte.

Aureliano, empertigado quando o assunto era música clássica, parecia outro assim que se embrenhava entre os talentos da bateria da escola de samba do Cruzeiro. Ali, o gajo era conhecido como Aurê da Cuíca, justamente o instrumento que havia abraçado desde que fora fisgado pelo som da ARUC, a mais tradicional do Distrito Federal.

Aureliano e seu ater ego, apesar das disparidades, pareciam viver em harmonia. Até mesmo a vida amorosa do gajo andava às mil maravilhas, inclusive com promessas de casamento. É que o músico acabara de firmar namoro sério com Maria Helena, violinista das mais talentosas. Ao lado do rapazola, a moça era destaque na orquestra.

O oboé e o violino pareciam fadados a tocarem em harmonia para o resto da vida. Entretanto, sempre há um entretanto para atazanar a vida dos bem-aventurados, e, certa noite, noite de sexta-feira, durante o ensaio da ARUC, eis que a cuíca do Aurê se esbarrou no pandeiro da Lucimara. Pra quê? Os desavisados poderiam imaginar que o aconteceu na madrugada fossem gritos de socorro. Ledo engano, não passavam de urros de luxúria, cujas faíscas poderiam ser vistas na escuridão por todo Cruzeiro.

Na manhã seguinte, durante o ensaio da orquestra, Maria Helena foi a primeira a notar a desafinação do oboé. Pois é, justamente do oboé! Era como se o instrumento estivesse alheio aos caminhos da partitura.

— Aureliano!

— Oi.

— O que é isso?

— Isso o quê?

— Eu é que pergunto!

Margô, antes que a discórdia prosseguisse, tratou de dar uma pausa. Era nítida a falta de condição do Aureliano de prosseguir. Todos ficaram boquiabertos com tamanha descompostura do mais exigente dos músicos. É óbvio que alguns possuíam mágoas por outrora terem sido humilhados pelo instrumentista. O trompetista foi o primeiro a expor a ferida aberta.

— Margô, não seria a hora de arrumar outro oboísta?

Aureliano, mesmo mais pra lá do que pra cá, quis dar uma oboezada na cabeça do desafeto. Foi impedido pelo flautista e, se o imbróglio não virou rebu, foi graças à intervenção da maestrina, que deu por encerrado o ensaio. Rusgas, entretanto, foram inevitáveis. Perfeccionista que era, Maria Helena não perdoou Aureliano, que não teve alternativa a não ser enfiar o oboé entre as pernas e ir para casa chorar suas mágoas.

O homem acabou adormecendo no sofá da sala e, já tarde da noite, despertou. Levantou-se, passou pelo oboé como se ele não existisse e se dirigiu ao quarto. Abriu o armário e se deparou com a cuíca, que o recebeu sorridente. Não teve dúvida, saiu em busca da Lucimara, que, requebrando os dedos sobre o pandeiro, já aguardava o amante.

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Eduardo Martínez é autor do livro 57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’

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