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Ainda o Rio

Padroeiro e fundador fogem temendo tiros e chibata do Coronel Tainha

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto Tomaz Silva

De passagem pelo Rio de Janeiro de todos os brasileiros, me deparei hoje (31) pela manhã com uma daquelas cenas inusitadas para a cidade que um dia foi maravilhosa. Era um tiroteio entre traficantes e milicianos dos complexos da Penha e do Alemão contra os moços acima de qualquer suspeita das polícias carioca e fluminense. Algo jamais visto na aldeia incrustada entre o mar e montanha e onde nasceu o time de futebol que mostrou ao mundo o que é fanatismo em preto e vermelho, mas sem sangue, sem negacionismo, sem dor, sem golpe, sem mentiras e, principalmente, sem falsos patriotas.

Inicialmente pensei tratar-se de mais uma daquelas intermináveis festas de São João no alto dos morros. Afinal, um tirinho para cá, um morteiro para lá e um estalinho do tipo granada israelense pra acolá não assustam ninguém. Me borrei todo no momento em que ouvi uma voz claudicante gritar para os meganhas de Mao Tsé Tung: “Caguem para o nove dedos. Matem e depois perguntem seus nomes. Ou somam ou sumam”. Será que era o espírito do general Médici, a quem se atribui a autoria da célebre frase “Ame-o ou deixe-o”? Talvez mais uma das muitas histórias do Sargento Garcia tentando emparedar o Zorro. Nem uma e nem outra.

Percebi que não quando o Coronel Tainha usou o rádio e a TV para anunciar ao povo que seus coroinhas já haviam produzido 120 presuntos. Sem ter para onde correr, percebi que estava no Rio da família imperial. Não a do clã golpista, mas a do gordo D. João VI e de D. Pedro I, patronos de meu avô Aristarco Pederneira.  Sonhando com a época em que o corre-corre, o empurra-empurra e a chuva de balas identificavam apenas os festejos em homenagem a Cosme e Damião, me espantei de fato ao notar a multidão de vultos históricos correndo em fila indiana rumo a um porto seguro. Na véspera do dia de Todos os Santos, dei de cara com o militar e fidalgo português Estácio de Sá pulando do Pão de Açúcar em busca da nau de Pero Vaz de Caminha.

É claro que ele não achou. Ex-governador-geral da Capitania do Rio de Janeiro, a ideia era se juntar à trupe francesa que ele havia expulsado da Baía de Guanabara em 1565. Entre as flechas dos Tamoios, a chibata dos franceses e os fuzis dos seguidores do caos, nada melhor do que se refugiar no aprazível Morro do Estácio, no centro da cidade, e de lá se fantasiar de fritador de hambúrguer ou de presidente dos Estados Unidos para participar de um épico desfile na Escola de Samba Unidos dos Traíras do Brasil. Para as lideranças do Comando Vermelho, a tentativa de fuga de Estácio de Sá estava associada a um outro tipo de medo. Ou seria pavor?

Na verdade, o fundador do Rio estava assustado e preocupado com a possibilidade de os coroinhas do atual governador, o que não tem pressa para falar, obrigarem-no a repatriar o ouro roubado pela Coroa Portuguesa e recambiá-lo para a Cidade da Polícia. Deus me defenda. Por falar em Deus, recorri à misericórdia divina ao notar a fila de santos que, após séculos do check-in, procuravam o balcão de checkout da Panam, mistura de Panair com Latam. Cansado de se esconder das brincadeiras de bandido e mocinho motivadas pela discórdia sobre territórios dos bailes funk e normalmente vencidas por quem tem mais fuzis, o Cristo Redentor abria a lista de fugitivos para além-mar.

Segundo da fileira encorpada por Tiradentes, padroeiro das polícias Militar e Civil, São Jorge sequer pensou em se despedir de Jorge Benjor. Montado em seu cavalo branco, adentrou a aeronave vermelha e, com receio da chibata grossa de Tainha, de lá acenou para os cariocas aos berros: “Volto para a Capadócia, de onde nunca deveria ter saído. Volto porque se é que o mundo tem c., o c. do mundo é aqui”. E se foi, seguido por São Sebastião, que partiu feliz para Milão, sua terra natal. Padroeiro do Rio de Janeiro, o santo Sebastião fugiu com medo da homofobia da família e dos seguidores de Jair Bolsonaro. Tudo porque os meninos e as meninas das comunidades LGBT o transformaram em uma espécie de ícone gay. Santa ignorância. Oriundo de Caná de Galiléia, na Palestina, São Judas Tadeu, despachou a mala, mas recuou tão logo soube da classificação do seu Flamengo para a final da Libertadores, a quinta do clube.

Se resistir às balas perdidas, Ele vai esperar pelo tetra. Meu Deus! O que fizeram com o meu Rio de Janeiro. A cidade hoje é só lamento. É o Rio em guerra de dezembro a janeiro, um necrotério a céu aberto. De maravilhoso a tenebroso foi um pulo. E de operação em operação, a carnificina, a matança e a barbárie se somam às carreatas dos que ora se juntam às milícias, ora se unem aos traficantes na luta pela reconquista de espaços perdidos. Sobre as perdidas autoridades, nada a declarar além do que foi pedido por alguns parlamentares da bancada bolsonarista na Câmara dos Deputados: “Um minuto de aplausos pelas dezenas de mortos no Rio”. Coisa pequena para um governador que vem usando 120 cadáveres como troféu. Meu Deus! Será que são todos assim: metade loucura e outra metade santidade. Deus me livre desse povo que não sabe o que diz, muito menos o que faz. Como D. Preso I vive se fingindo de morto, que D. Preso II nos dê vida longa.

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Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras

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