Duas versões
Paixão à primeira vista ou quase isso
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A casa estava abarrotada de parentes e amigos mais próximos. Regina e Osmar, os anfitriões, distribuíam sorrisos para todos, como se fossem astros de cinema prestes a ganhar o Oscar. Verdade que não era para tanto. Mas a verdade é algo que, não raro, é mera ilusão.
Bodas de Ouro! Pois é, há exatos 50 anos, os pombinhos viviam a vida que todos acreditavam ser a mais pura perfeição. Também não que fosse abominável ou algo do tipo, apesar dos momentos, digamos, aborrecíveis. Quem nunca os têm, afinal?
A versão oficial daquele romance afirmava de pés juntos que Regina, perambulando pela praça em frente à Catedral, em Brasília, numa manhã ensolarada de setembro de 1973, se deparou com um belo rapaz de cabelos desalinhados e profundos e enigmáticos olhos claros. De tão impressionada que ficou, não conseguiu evitar de se apaixonar perdidamente por Osmar. Mas não pense que a história acabou por aí. Nananinanão!
Osmar, por sua vez, tentando proteger o rosto dos raios solares, virou-se e, de repente, se viu diante da mais graciosa mulher que jamais imaginou existir. Fisgado, deixou de lado a costumeira timidez e puxou conversa, que se iniciou de modo inusitado.
— Não pensei que você viesse.
— O quê?
— Você veio.
— Vim, mas… Peraí! A gente se conhece?
— A partir de agora, sim. Me chamo Osmar.
Ele estendeu a mão, o que fez Regina receber o gesto com um sorriso.
— Prazer, Osmar. Sou a Regina.
Apresentações feitas, Osmar a convidou para chuparem um picolé no carrinho de um ambulante logo ali. E foi assim que o romance teria começado. Bem, essa é a versão conhecida e aceita como verdadeira, mesmo porque não há motivo para dúvidas.
Não obstante tal história já sacramentada, há quem diga, à boca pequena, que a coisa não foi bem assim. E apenas para matar a sua curiosidade, que percebo pelos olhos arregalados, farei de você um dos raros conhecedores do que realmente aconteceu.
De cara, já digo que essa coisa de paixão à primeira vista não aconteceu. Regina, que naquele dia soubera que Joaquim, um primo por quem era apaixonada, havia anunciado que iria se casar com outra, ficou possessa. O quê? Aquilo não era possível! Ainda mais depois de promessas feitas por ele para Regina debaixo da jabuticabeira do quintal da casa dos avós.
Revoltada pela traição, Regina saiu sem rumo, mas com o intuito de ir à caça de um homem para casar. Não importava quem aparecesse pelo caminho.
De tão sem rumo, foi parar em frente à Catedral. Religiosa que sempre fora, pensou até em entrar para buscar consolo espiritual. Entretanto, antes que o fizesse, notou a presença de um rapaz mais alto do que a maioria, olhos claros, que contrastavam com os cabelos quase negros. Ela o observou por uns bons 20 minutos. O que ele estaria fazendo ali? Parecia angustiado com algo. Teria sido traído também?
Com ímpeto de chamar atenção, a mulher começou a andar de um lado para o outro, como se estivesse perdida. Não adiantou. Cantarolou, mas nada do sujeito sequer tirar os olhos do horizonte. Quando pensou em assobiar, eis que uma nuvem saiu da frente do Sol, que jogou luz sobre o rapaz, que virou o rosto e, aí sim, percebeu a bela Regina, que lhe sorriu.
Desconcertado que ficou, a princípio, o gajo imaginou que aquele sorriso era para outrem, tanto é que ele virou o rosto em várias direções até que, finalmente, se deu por convencido. O sorriso era mesmo para ele. Tomou coragem e, então, deu alguns passos em direção à jovem, estendeu a mão e sorriu.
— Osmar.
— Regina.
Realmente Osmar a convidou para chupar picolé. Todavia, como o dinheiro naquele tempo lhe era curto, só deu para comprar um, que Regina fez questão de dividir com o quase estranho.
O romance aconteceu, apesar do primeiro beijo só ter acontecido dois meses após o primeiro encontro. Seja qual versão você preferir, o casamento aconteceu, já que os dois estão comemorando Bodas de Ouro. Pois é, isso não é algo que se vê todos os dias. E pensar que tudo isso aconteceu por uma punhalada no coração.
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Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’ (Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos).
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