´Vida de cão
Panqueca e Fred
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Panqueca não é propriamente uma vira-lata, é filha de dogue alemão com uma cadela de raça indefinida, mas herdou do pai algumas características importantes, entre elas, seu porte, quase um metro de altura na cernelha, região dos quadrúpedes onde se unem as espáduas, sendo este o ponto de referência para a medida da altura desses animais e não a cabeça, como podem supor os leigos; e o temperamento dócil. Da mãe recebeu a pelagem branca e a esperteza típica dos cães de rua.
Fred, ao contrário, nasceu de uma cruza meticulosamente programada pelos proprietários, moradores da região rural do município de Santo André, no ABCD Paulista, de um macho e de uma fêmea de Huskies Siberianos, ambos de coloração sable de marrom e branco; tendo gerado uma ninhada de quatro crias, todas de cores idênticas às dos pais, cabendo duas a cada um deles, para fins de comercialização. O valor de um filhote de Husky pode chegar a R$ 3.000.
A história de Fred, no entanto, é bem traumática, pois, após o dono ter vendido seu irmão, ele aguardava para ser entregue a um sitiante da região, para quem já estava prometido. Porém, na noite anterior à data combinada para a efetivação da venda, foi furtado, tendo ficado desaparecido por quase um ano. Encontrado casualmente por meio de uma denúncia de maus tratos, já praticamente com o tamanho adulto, embora bastante subnutrido, pois, além de ser submetido a castigos físicos, não era alimentado adequadamente, foi reconhecido pelo dono original pela cor dos olhos mesclados de azul e castanho.
Naturalmente, a pessoa que o iria adquirir inicialmente perdeu o interesse e minha amiga, dona da Panqueca, procurando uma companhia para ela – não para reprodução, pois a cadela é castrada – o localizou por meio de um anúncio em um site da Internet, cujo preço estava bem abaixo do costumeiro, uma vez que ele necessitava de cuidados especiais, com o uso de medicamentos e vitaminas de alto custo.
Fui incumbido de buscá-lo com meu furgão em uma ensolarada manhã de sábado, com temperatura acima dos 35º C; depois de rodar bastante pela região meio sem rumo, pois, cercada pela vegetação local e pelo terreno bastante acidentado, anulou o sinal do GPS, mas consegui finalmente chegar à propriedade do vendedor, uma área bem vasta onde havia criação de vários bichos como cavalos, cabras, outros cachorros, alguns bois e vacas.
À primeira vista, percebi a fragilidade física e psicológica do animal, situação que não anulava por completo a beleza e o garbo, atributos próprios da raça, provocando em mim um sentimento, ao mesmo tempo, de encantamento e consternação.
Enviei, por aplicativo de mensagem, uma foto para minha amiga que, como eu, apaixonou-se instantaneamente por ele e, na mesma hora, procedeu a transferência da importância combinada para a conta do vendedor. Com bastante esforço, conseguimos acomodá-lo na caçamba do veículo, pois se recusava a entrar, com muitos tremores pelo corpo e tentando fugir. Fiquei preocupado que pudesse se machucar, caso ficasse muito agitado na viagem, mas felizmente se acomodou em um canto e permaneceu imóvel até atingirmos nosso destino.
Ao chegar, Fred manifestou o mesmo comportamento arredio, inicialmente não queria sair do veículo e depois tentou fugir mais uma vez. Finalmente o colocamos para dentro da casa, em cuja entrada há uma grande área livre, e, mal passou pelo portão, foi recepcionado festivamente por Panqueca, pulando, latindo e lambendo o focinho do novo companheiro, deixando-o ainda mais acuado.
Missão cumprida, me despedi de todos, inclusive de Fred e Panqueca, com uma ponta de tristeza, pois o pouco tempo de convívio com aquele cão carente foi suficiente para gerar uma genuína afeição. De todo modo, passei a acompanhar o processo de adaptação em seu novo lar; aos poucos foi se tornando mais sociável e demonstrando bastante aplicação no aprendizado das lições de sua parceira.
Um belo dia, minha amiga, ao sair atrasada para o trabalho, o que, diga-se, não é raro, esqueceu-se de trancar o portão, foi o suficiente para Panqueca, sob a observação atenta de Fred, com um pulo, bater a pata na maçaneta, abrir e correr para a rua, enquanto o companheiro permanecia observando incrédulo. A cadela, então, emitiu um forte latido e ele entendeu o recado, escapando também.
E seguiram os dois alegres, ela indicando o caminho para ele ir cheirando os cantos e os postes, demarcando os territórios. Algumas pessoas se assustavam ao ver a dupla, afinal, embora inofensiva, incomumente grandes para andar soltos pelas ruas, mas eles não se importavam com os olhares e seguiam usufruindo sua liberdade.
Chegaram a uma praça, brincaram com as crianças mais corajosas e correram atrás de uma bola porventura surgida de algum lugar misterioso. Rolaram pela grama e pela terra. Voltaram para a rua, tomando o cuidado de atravessar na faixa de pedestres, Panqueca, muito sabida, conhecia bem os perigos do trânsito. Aliás, aprendeu na dor, em uma aventura anterior, foi levemente tocada por um veículo ao manobrar, felizmente sofreu apenas um leve ferimento, mas o suficiente para assustá-la a ponto de não esquecer. Latiam para cada cachorro que encontravam pela frente e em especial para os confinados atrás dos portões, fazendo pirraça.
De repente, ela, orelhas em riste, paralisa em frente a um estabelecimento comercial. Não um estabelecimento qualquer, mas um comércio de carnes, ele, quase instantaneamente, imita sua pose. Por uma feliz, ou infeliz, coincidência, dependendo do ponto de vista, o dos cães, ou o do atendente ao colocar uma suculenta peça de picanha sobre o balcão para exibi-la a uma freguesa e, num momento de distração, Panqueca avança em sua direção, abocanha o petisco e, antes que alguém pudesse esboçar alguma reação, sai em desabalada carreira, sendo seguida por Fred à mesma velocidade.
O proprietário do açougue, jurando vingança e pronunciando meia dúzia de impropérios, sentencia:
— Extex doix rafairox hão d’aparecer por aqui novamienti e eu ox pégo!
Não deu outra! Uma vez satisfeitos após devorar a iguaria e já cansados de tanta correria pelas ruas, os dois meliantes resolveram voltar para casa. Embora tenham tomado o cuidado de passar pelo lado oposto da rua, o galego estava atento e já havia combinado com seu funcionário, ficariam escondidos, cada um com um laço nas mãos e assim que os dois se aproximassem os pegariam, prenderiam e só os libertariam quando a proprietária, devidamente comunicada, viesse resgatá-los, obviamente, pagando a fiança correspondente ao dobro do preço de uma peça de picanha como indenização não só pela perda material, como pelo dano moral.
Um acontecimento fortuito, entretanto, alterou o rumo da história, fruto da insegurança das nossas grandes cidades, e como, às vezes, contrariando o dito popular, dois raios caem no mesmo lugar no mesmo dia, surge, arma em punho, um assaltante no açougue do português. Embora nossos heróis estivessem amarrados em um canto do estabelecimento, o ladrão inadvertidamente aproximou-se demais e eles, revelando seu lado agressivo, até então desconhecido, avançaram sobre o gatuno rosnando ferozmente, desarmando-o e o imobilizando até a chegada da polícia que o levou para o xadrez.
Alguns minutos depois, a proprietária dos cães chega ao local um tanto afobada se deparando com uma sena inesperada: o dono do açougue aos beijos e abraços com eles; depois de tomar conhecimento de toda a saga de suas crias naquele dia, desculpou-se pelos transtornos causados e agradeceu pelos cuidados dedicados a elas e despediu- se, pois não via a hora de se recolher à sua casa ao fim de um dia cansativo de trabalho intenso. Antes que fossem, no entanto, além de não cobrar o prejuízo, o português fez questão de dar mais um bife para cada um dos animais em reconhecimento à atitude corajosa. Não era picanha, é verdade, mas cachorro não sabe a diferença entre um corte nobre e uma carne de pescoço.
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Nota: o presente conto tem muito de ficção, mas Panqueca, Fred e minha amiga são personagens da vida real.