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Conceitos primitivos

Para os patriotas, vitória alheia sempre é culpa do juiz ladrão

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto de Arquivo

Jornalista com algum conhecimento da matéria, circulo há décadas pelos variados segmentos da profissão. Com a modéstia dos suburbanos que deixaram a periferia para se arriscar no centro do poder, fiquei conhecido pela longa atuação em três dos cinco tribunais superiores. Talvez os mais importantes da seara judicial. Tenho boas lembranças, principalmente do aprendizado e do conhecimento a respeito do modus operandi do poder. Importante, mas nada que mereça uma narrativa singular. Saudades só dos estádios de futebol, nos quais, pomposamente com crachá de grandes jornais e uma vontade enorme de acertar, magricelamente adentrei e fiquei por rechonchudos e impagáveis anos. Profissionalmente, foi no esporte que galguei os primeiros degraus do reconhecimento.

Consegui lastro similar apenas ao campo da política, onde cheguei, em 1984, junto com a descoberta de Brasília como mercado jornalístico. Na bagagem, somente o necessário. Na alma, o intenso e proveitoso convívio com os mais velhos e sábios. Foram eles que forjaram muito mais do que minha consciência e meu caráter. Vem deles o prazer da escrita, das “viagens” pelo mundo das interpretações musicais e, sobretudo, do respeito às vitórias alheias, principalmente aquelas conquistadas democrática e inquestionavelmente, isto é, sem ajuda do VAR. Vivi de tudo um pouco, inclusive situações eleitorais que marcaram a vida de muitos dos atuais 213,4 milhões de brasileiros. A ascensão e o impeachment de um tal caçador de marajás foram algumas delas.

De somenos importância para alguns, a outra foi a até então inédita escalada de um operário à Presidência da República. O que se sucedeu fica por conta da análise de cada um. Como nas discussões pós grandes clássicos nacionais, o desempenho acima da média é mérito do treinador, uma goleada quer dizer gratidão eterna ao talento do time e a derrota é sempre culpa do juiz ladrão, principalmente para o gado do mito. Poucos têm o dom de admitir que perderam por merecimento do adversário. Embora não admitamos o amadorismo como torcedor e como eleitor, segundo a ordem natural da lei de causa e efeito, o normal é que, na política e no futebol, para um ganhar o outro tem de perder. Por isso, a constante preocupação com as divisões em polos nas arenas do voto e do gol.

Nos estádios ou nas urnas, a polarização nos remete a conceitos diversificados, entre eles uns bem primitivos. Estar entre a cruz e a espada é o pior dos cenários. É como fugir do abismo e ficar bem próximo do precipício. A diferença é que o abismo significa não ter salvação. Quanto ao precipício, faltam alguns salvadores metros para que atinjamos o fundo. Infelizmente para os amantes do futebol, em qualquer clássico do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco, Paraná e Alagoas, entre outros estados, as semelhanças belicosas não são meras coincidências. Tanto nos campos quanto nas ruas, a ignorância segue cada vez mais viva. Como os defensores raiz de determinadas candidaturas, torcedores animalizados banalizaram a honra e a vida.

Com a insensibilidade bestial de um cão raivoso, eles se acham no direito de, com a mesma naturalidade, xingar a genitora do árbitro de futebol e ofender juízes da Suprema Corte. Não importando o nível ou o cargo que ocupam, a cólera dessas pessoas só é coerente com suas contradições. Ministro da Economia, Paulo Guedes critica Lula pela intenção de aprovar uma alteração constitucional para gastar, em 2023, até R$ 198 bilhões acima do Teto de Gastos. Talvez por falta de coragem ou de conhecimento, Guedes não revela que, de 2019 a 2022, o governo a que ele pertence gastou cerca de R$ 794,9 bilhões acima do teto. Também não lembra que, antes da eleição, o Centrão havia ganho quase R$ 20 bilhões para a farra eleitoral. Na mesma época, o governo cortou recursos para a merenda escolar, universidades federais e farmácia popular.

Das coisas sérias aos memes, quase tudo no governo do tenente presidente é sinônimo de incoerência. Desde o início da gestão, os apoiadores raiz de Jair Messias criticam a sugestão de banheiros unissex nas escolas públicas. Pois é o mesmo grupo que há mais de 20 dias usa o mesmo banheiro químico em frente aos quartéis onde batem ponto. Que consigamos um fôlego durante a Copa do Mundo. Nos campos de futebol e na política só cabem adversários. Os inimigos devem se restringir ao front. Que tal usarmos o período como oportunidade para nos tornarmos alguém melhor? Encaremos a “festa” do futebol como um sinal definitivo de que política e políticos não são para amadores. Nosso amadorismo exige que tenhamos tudo para aproveitar a vida. Deliberadamente, esquecemos que já temos a vida para aproveitar tudo. Que venham os sérvios, os suíços e os camaroneses. Da piada dos patriotas que querem melar a gente ri a partir de janeiro.

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