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Otto e Volod

Paranaense de origem alemã, papagueava todos os postulados do reacionarismo raiz

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Otto era um direitão cascudo. Paranaense de origem alemã, papagueava todos os postulados do reacionarismo raiz. Estava convencido de que a vacina introduzia no vivente chinezinhos minúsculos que controlavam sua cabeça; desconfiava que a Terra era plana; e tinha certeza de que o mito era o messias, enviado para salvar o Brasil e o mundo do comunismo. Só não era muito conservador nos costumes – também, não podia. Aos 23 anos, solteiro, morava com os pais, não tinha uma esposa recatada e do lar, nem crianças para proteger da ideologia de gênero, nem bebezinhos cujos lábios inocentes deviam ser resguardados da mamadeira de piroca; não tinha nem namorada e saía na mão todo santo dia.

O que singularizava Otto em meio ao gado mitista era o seu militarismo. Nas manifestações de 7 de setembro, do golpe que deu chabu, comparecera de terno verde, igualzinho ao do veio da Havan, portando um cartaz manuscrito que exigia: “Vamos invadir a Argentina, a Bolívia, a Venezuela e Cuba e esmagar o comunismo”. Era demais, até para os reaças mais doidinhos; acharam que ele era um provocador esquerdista e deram no jovem da Havan uma surra de criar bicho. Quando recuperou os sentidos, rodo moído, Otto concluiu, “Fui vítima de comunas infiltrados; preciso denunciar esse risco a meus parças”.

Na cabecinha de Otto havia espaço para dois heróis: o homem, o mito, o salvador do Brasil, e seu bisavô, membro da SS nazista, que morrera em 1943, na luta contra o Exército Vermelho. O jovem herdara dele o fascínio pelas armas, a crença de que só uma ditadura podia assegurar a ordem – e um antissemitismo raivoso. Como são poucos os judeus no Brasil, também passou a ter um forte ranço de negros, nordestinos, homossexuais, o time inteiro. No fundo, desejava um Brasil ariano, para descendentes de alemães que nem ele (só que, pra azar seu, tinha cabelos e olhos castanhos).

Então veio o ataque russo à Ucrânia. Otto descolou uma grana com os país, dizendo que era para alugar e equipar um apartamento (aliviados por o filhão finalmente sair do ninho, atenderam ao pedido sem muitas perguntas), e voou para a Polônia. Três dias depois, estava na Ucrânia, numa instalação perto da fronteira polonesa, destinada aos voluntários estrangeiros e mercenários que vinham combater os russos. O ariano brazuca não falava uma palavra de ucraniano, russo, polonês ou inglês, só português e umas coisinhas em alemão de criança, do tipo “Neném qué papá” ou “Ou Neném fez caca”, mas sorria e fazia arminhas pra todo mundo. Os ucranianos, que enfrentavam armas de verdade, olhavam-no com desprezo; um deles chegou a cuspir em sua direção. Imperturbável, o cascudão antissemita pensou. “Deve ser judeu, eles estão por toda parte”.

No interrogatório com o comandante ucraniano, recorrendo à mímica. Otto conseguiu informar que não tinha nenhuma experiência militar, nunca havia disparado uma arma na vida, mas estava disposto a morrer pela Ucrânia. O oficial olhou-o em silêncio por algum tempo, depois decretou:

– Destacamento Especial Volod.

A noite já havia caído quando Otto, depois de se perder algumas vezes, chegou ao alojamento Volod. Foi recebido por um homem alto e pálido, todo de preto: botas pretas, calças pretas, casaco de couro preto. Parecia imune ao frio ucraniano, que fazia Otto tremer.

O ariano de araque disse o nome, apontou para o peito e falou – Brasileiro –, depois apontou para a boca e disse – Português –, dando em seguida um sorrisinho de desculpas. Mas teve uma boa surpresa. O homem de preto respondeu-lhe em português castiço, com um sotaque inindentificável:

– Português está bem. Eu cá falo todas as línguas da Europa. Morei em Portugal faz muito, muito tempo – e abriu um leve sorriso monalisesco, cheio de mistérios.

Animado, Otto perguntou:

– Como vocês combatem?

– O Destacamento Volod sai à noite. Para caçar.

Otto imaginou-se rastejando, todo de preto e empunhando uma faca, até uma sentinela russa, para cortar-lhe a garganta. Uau! E retomou um tema familiar.

– Soube que há muitos judeus entre os russos, será um prazer acabar com esses subumanos.

O homem de preto ficou sério e balançou a cabeça em negação.

– Não somos antissemitas. Os homens são todos iguais. Todos feitos de carne, ossos e sangue.

Deu uma guinada na conversa.

– O comandante ucraniano informou-me que não tens a menor experiência militar. Ainda assim, serás útil ao Destacamento Volod.

Nova guinada.

– O destacamento tem o meu nome, Volod. Conheces a palavra?

Chateado por seu antissemitismo ter sido sumariamente descartado, Otto fez que não, em silêncio.

– Talvez conheças as formas russas e romenas da palavra? Vlad? O presidente russo chama-se Vladimir, o ucraniano, Volodomir. É o mesmo nome. Mas uso Volod apenas aqui, em outros países sou conhecido por Vlad. É o nome de um parente romeno. Já ouviu falar em Vlad Tepes, também conhecido como Vlad Dracul?

Otto negou, em silêncio.

– Pois é, faço questão de mencionar esse nome como uma espécie de aviso do que vem por aí. Alguns entendem e tentam fugir, mas nunca conseguem. Outros ficam aí, me encarando sem entender nada, que nem tu.

Mais uma guinada na conversa.

– Sinto muito, não vais lutar contra judeus russos ou cristãos russos. Mas vai-nos servir. Nem sempre saímos para caçar, mas toda noite temos de nos alimentar. Para proteger seus homens, o oficial ucraniano enviou-te. Um lanchinho. Uma fruta exótica, tropical.

Assoviou e os quatro homens do Destacamento Volod – todos pálidos, todos vestidos de preto – reuniram-se em torno de Otto. O chefe cravou os caninos em sua jugular.

Dividido entre o pavor absoluto e a indignação, Otto ainda pensou: “Absurdo, não sou exótico, tropical. Sou um ari…”.

Depois, mais nada.

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