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Parahyba

Pavana para uma princesa morta ao som de Ravel

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Autor/Imagem:
Daniel Marchi - Foto Acervo Pessoal

Faz anos que acalento produzir um documentário em vídeo sobre a querida cidade de Paraíba do Sul, terra de minha mãe e sua família de origem. Meu tataravô, o velho João Marchi, que andou sobre a terra até 1926, deixou sua Itália natal lá nos idos de 1888 para se aventurar pelo Brasil. Chegou aqui com sua esposa, Filomena Zanella, e quatro filhos: Marco Paolo, Giovanna, Rosa e Giuseppina.

Outros – Américo, Yolanda, Luísa, Maria e Luís – já nasceram em solo mineiro, pois foi naquela província que ele se fixou, primeiro em Rio Preto, depois Barreado, Porto das Flores, Rio das Flores, já no lado fluminense, e, finalmente, na antiga “Parahyba do Sul”, como, aliás, eu prefiro escrever e doravante adotarei, com esse “hy” reproduzindo uma origem tão indígena, forma que se conecta ao passado rico e heroico da terra e que tem sido assim defendida pelo grande artista local Getúlio Júnior, meu dileto amigo.

Por que João Marchi perambulou por aqui e ali antes de se fixar em Parahyba é hoje um elo perdido na história de meus antepassados. Posso supor que a razão dessas mudanças foi a busca por terras para a agricultura e sempre melhores condições de vida e trabalho para ele e a família. Uma hipótese satisfatória. O fato é que ele deitou raízes naquele pequeno município e é lá que está sepultado.

Por um breve desvio na rota familiar, meu avô materno, filho de Marco Paolo, nasceu em Valença, no sul fluminense. Essa história é curiosa e um dia a contarei. O fato é que a vida o trouxe de volta a Parahyba e, se perguntado, ele diria que não tinha quaisquer ligações sentimentais com a cidade onde nascera, sendo um sul-parahybano autêntico.

Voltando à ideia do documentário, queria intitulá-lo de “Pavana para uma princesa morta…” – a cena inaugural seria tomada de alguma paisagem, em plano aberto, mostrando a cidade sob um tênue sol de fim de tarde e, à medida que escurecesse, a melodia de Ravel iria tocando, enquanto o narrador, em primeira pessoa, explicaria como aquela cidade estava morrendo.

Não digo que Parahyba do Sul esteja morrendo. O que vai se perdendo é a cidade que tenho fixada na minha memória. Eu, que andei de bicicleta pela Rua da Estação ainda com seu calçamento de paralelepípedos, subi o morro do cemitério calçado a pé-de-moleque, testemunhei fumaça saindo das chaminés da Cerâmica D’Ângelo, ouvi os sinos da Igreja do Rosário batendo as horas com precisão, senti o cheiro do armazém do Sr. Malheiros, bebi água da mina do Amado e água Salutáris engarrafada, fiz cópia de chave no chaveiro que ficava dentro do Mercado Municipal, vi cheias do rio Paraíba alagarem o bairro da Cruz das Almas, comi pizza e bebi chope no Chicão, presenciei leilões na festa de Sant’Ana sendo comandados pelo meu primo Felippe Bastos, assisti a desfiles de carnaval do G.R.E.S. Leões do Império, Unidos do Inema e Pulo do Gato, vou, a cada dia, reconhecendo menos o cenário de parte de minha infância.

Já não encontro pelas ruas tantas pessoas que ficaram na saudade e que, em minha vida, tiveram uma importância que só hoje, à medida em que vou avançando em anos, percebo e compreendo. Procuraria costurar o enredo do filme com uma história que vou contar agora.

No ano de 1989, o meu amigo Marquinhos Ciodaro, ciente de meu interesse sobre tudo que era curioso e antigo, disse que, em casa de sua família, havia, no quintal, o pedaço de uma lápide de cemitério. O fato despertou-me a curiosidade porque essa casa, no centro da cidade, não estava próxima de nenhum cemitério – nem do original, com acesso pela hoje rua Dr. Alexandre Abrahão, nem do mais novo, inaugurado no final dos oitocentos, que até hoje serve à cidade. E como aquilo fora parar ali? A tia dele, dona Itália, referendada pelas irmãs dona Glória e dona Vera, explicou-me: naquele local, em outra época, havia uma casa ainda mais antiga, que ela praticamente mandara demolir para construir a atual. E, quando virada ao contrário, a bancada de mármore do tanque de lavar roupas revelou a curiosa inscrição: “Aqui jaz a Mui Virtuoza Senhora (trecho interrompido por uma rachadura) fallecida em 9 de maio de 1857. Jamais será esquecida.” A peça de mármore ainda estava lá. Eu a vi, a limpamos, e comecei a investigar sua origem.

Cheguei a expor o caso à pessoa que, então, era referência absoluta em história sul-parahybana, o sempre amigo de minha família, cronista e contista Nicolino Visconti, que me recebeu para uma entrevista que gravei em fita cassete. Nesta visita acompanhou-me uma amiga querida, Monique Andrade, hoje reconhecida advogada local. Muito cogitamos, mas não chegamos a uma conclusão adequada sobre o mistério. Ao menos, deixei a casa dele com um livro autografado, “À Sombra das Velhas Palmeiras” que guardo desde então como uma relíquia e, ao lado de “A Rosa Azul” e “As Três Pontes”, formam a trilogia que aquele grande homem publicou em vida.

Mais tarde, por mera sorte, acabei descobrindo a quem pertencia aquela inscrição fúnebre. Isso não vou contar, porque seria desfazer um mistério que outros podem querer decifrar também a partir desta história, e entendi que, na transferência do antigo para o novo cemitério, jazigos de família podem ter sido desmontados para serem ou não reconstruídos e, as placas de mármore que os revestiam, podem ter tido um destino menos nobre, como serem usados em bancadas de lavanderia. O fato é que o nome daquela “mui virtuoza senhora” não está mais perdido para mim, e sei exatamente onde seus despojos estão repousando no Cemitério Dr. Leopoldo.

O perecimento dessa Parahyba do Sul que eu tento, a todo custo, preservar, será paralisado nesse documentário e, como desforra, ainda vou comprar um pedacinho de chão em algum lugar na cidade, só meu, para também ali fincar uma raiz, apesar da antiga casa de meus avós permanecer hígida e acolhedora como sempre. E a cena final mostrará as velhas palmeiras imperiais do Jardim Velho, enquanto se ouvem as últimas notas da música de Ravel, mostrando que tudo caminha para o inevitável fade out…

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