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Amores e rancores

Pedras somem do reduto de quem tem um telhado de vidro

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Autor/Imagem:
Mathuzalém Júnior* - Foto Fábio Rodrigue Pozebom

Honestidade, jogo limpo, quatro linhas, parceria, patriotismo, confiança e termos afins fazem parte de um passado tão distante que muitos dos brasileiros começam a acreditar que o período sequer existiu. Extinguiu-se como alguma coisa parecida com uma lenda, dessas que aparecem e desaparecem de tempos em tempos. Por exemplo, o mito está desmilinguindo. Por conta disso, as palavras da moda agora são ódio, desconfiança, decepção, riscos, ressalvas, violência, retrocesso, despreparo e golpe. Excluí deliberadamente a corrupção dessa primeira lista por razões óbvias. Afinal, ao lado de milhões de eleitores, continuo esperando que os terrivelmente honestos atirem a primeira pedra nos ladrões que eles tanto atacam. Faltaram pedras ou sobraram cidadãos de má conduta?

Talvez as duas coisas. A verdade é que o antagonismo do discurso anticorrupção com o acerto às claras com o Centrão mudou o rumo da prosa inicial. E não restam dúvidas de que o modelo anunciado de governo se perdeu rapidamente no monturo de pedras escondidas nas hostes do grupo comandado pelos apedrejados Arthur Lira (PP-AL) e Ciro Nogueira (PP-PI). São os mesmos que, lá atrás, chegaram a dizer que abandonariam o presidente caso ele questionasse o sistema eleitoral. Não fizeram nada. Pelo contrário. Estimulam publicamente as dúvidas de quem as têm. Como sabem que são unanimidades negativas, são eles os principais responsáveis pelo esconderijo dos cascalhos que, mesmo longe das mãos do povo, os atingem metaforicamente. Não atiram mais pedras porque têm telhados de vidro. Simples assim.

Aliás, é bem pior, pois, nesse caso, as singelas pedras escondidas são transformadas mentalmente em titicas benzidas antes de atiradas, de modo a permanecerem por longo tempo como dejetos. Ainda bem que as pedras não falam. Na prática, eles não atiram pedras porque seus pecados são tão grandes como os de quem atacam. Atacar por atacar não rende votos. Como não preciso deles (dos votos), tenho consciência plena dos adjetivos que veladamente recebo todos os dias. Ou seja, sabida e merecidamente sou criticado à exaustão por essa turma que endeusa parlamentares e simpatizantes do Centrão e do cercadinho. Desnecessário analisar esse endeusamento, na medida em que o sentimento é autoexplicativo. Quanto aos adjetivos, nem mesmo o fato de ter nascido no século passado me faz merecer algum respeito.

Obviamente não há como excluir dessa lista de “sensores” chatos e incoerentes os chamados bolsonaristas raiz (?). Com a mesma intensidade, estou certo de que eles me criticam – talvez me odeiem – por conta do que escrevo e digo sobre o bolsonarismo. Imagina se eles soubessem o que penso. E não é nada muito diferente do que escrevo. Em algumas situações, apenas pensamentos impublicáveis ou de sonorização proibida para menores. Melhor ficar no rame-rame, isto é, no barulho que se reproduz com constância monotônica e fastidiosa. Algo como narrativas que giram, giram, mas não conseguem sair do lugar ou do personagem fictício que eu adoraria fosse real. Em outras palavras, colunistas, articulistas e editorialistas viraram escrevedores de uma nota só. E não há como mudar.

Além das ladainhas contra a urna eletrônica e a favor do golpe, o governo de uma única nota nunca produziu nada que pudesse ser reproduzido. Portanto, para uma administração do tipo enceradeira, parece suficiente uma imprensa do tipo mais do mesmo. E assim o Brasil finge que é governado e os brasileiros embromam a respeito do aculturamento político. É uma caminhada firme e segura para um buraco sem fim ao lado do Messias, que já foi chamado de homem do século. Desconheço a matemática utilizada pelos que cunharam a expressão. O que sei é que, na tabuada de qualquer menino de quinta série, o somatório de zero mais zero não pode ser dois, tampouco dez. É o governo do zero a zero e não falemos mais nisso.

Se somados com exatidão, com amores e sem rancores, os números decorrentes das pesquisas de intenção de votos mostram exatamente um caminho bem distante do precipício. Também deixam claro qual o lado está à beira de um ataque de nervos. Para quem nasceu obscuro, não aproveitou o verde oliva, acinzentou-se no Parlamento e amarelou na Esplanada, nada pior do que desaparecer na poeira vermelha do cerrado do Planalto Central. Enquanto muitos temem pelo seu futuro, alguns ainda acham que haverá presente. Improvável. O que ninguém duvida é que, quando chegar a hora, na lápide em homenagem à sua memória estará escrito: Aqui jaz aquele que foi sem nunca ter sido.

*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978

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