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Deoclécio, o tristonho

Peripécias de um viúvo

Publicado

Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Irene Araújo

Deoclécio, que há pouco perdera a mulher, Lourdes, companheira de quase 40 anos, andava cabisbaixo. Já havia pensado em dar cabo da própria vida, mas faltava-lhe ímpeto para tal. Não se engane, no entanto, pois o casal, após os filhos criados, até pensou em separação, coisa que definitivamente foi deixada de lado. Muito tempo de união, mesmo que aos solavancos, os corpos se acomodam e consideram deveras trabalhoso um possível recomeço.

Além das memórias e dos álbuns de fotografias, o viúvo manteve o falante papagaio Lourival, presente de casamento. A ave sempre pendeu para o lado de Lourdes, que lhe retribuía os agrados com pão molhado no leite.

— Lourdes, meu amor, o veterinário já falou que isso faz mal pro papagaio.

— Hum! E desde quando veterinário sabe o que é bom pro Lourival?

— Ué, ele estudou pra isso.

— Bobagem! Quem sabe o que é bom pro meu menino sou eu.

A despeito de fazer bem ou mal, o fato é que o papagaio quarentão aparentava dar e vender saúde. E, apesar da ausência inesperada de Lourdes, ainda mantinha certa distância do Deoclécio, que até tentou se aproximar. No entanto, após algumas bicadas, o homem declinou da ideia, apesar de não guardar rancor do Lourival. Tanto é que, não raro, fritava alguns pedaços de aipim e oferecia um quinhão para o louro, que não fazia desfeita.

Certo dia, enquanto degustava aipim com bons goles de café, o velho percebeu que o tempo havia mudado. Uma lufada de vento balançou a cortina, fazendo com que a parte de baixo do tecido lhe tocasse a face. Levantou para fechar a janela, quando constatou que o céu estava carregado de nuvens densas e escurecidas. Logo começou a cair um temporal.

Transeuntes corriam de um lado para o outro em busca de abrigo. Nisso, uma jovem, não mais de 30 anos, talvez nem tenha percebido que um livro acabara de cair dos seus braços, que carregavam vários outros volumes. Aquela cena chamou a atenção de Deoclécio, que se sentiu incomodado por ninguém se preocupar em pegar aquele exemplar, que parecia castigado pelos pingos cada vez mais fortes.

O idoso tentou avisar as pessoas, mas ninguém parecia lhe dar bola. Por impulso, abriu a porta do apartamento, desceu as escadas e, decidido a resgatar aquele pobre livro, atirou-se debaixo da tempestade. Raios, trovões, água que batia sem piedade na pele. Deoclécio, afinal, conseguiu chegar ao lado da vítima. Agachou-se, tomou o livro em suas mãos, o segurou junto ao peito e, curvado, voltou correndo para o seu edifício.

Mal entrou no apartamento, Deoclécio pegou uma toalha e tentou enxugar ao máximo capa, folhas, tudo. Tudo encharcado. Ele não sabia se iria conseguir salvar aquele livro. Ainda assim, teve a ideia de deixá-lo atrás da geladeira, como fazia com suas meias úmidas, a fim de secá-lo.

Torcedor de nenhum time, resolveu buscar um filme na televisão. Por sorte, percebeu que iria começar um clássico do cinema nacional: “Matar ou correr”, com Oscarito e Grande Otelo. Pensou em convidar o Lourival para ver o filme, mas constatou que o papagaio já estava nos braços de Morfeu.

Pipoca pronta, Deoclécio abriu uma lata de refrigerante e se acomodou no carcomido, mas aconchegante, sofá. Enquanto assistia ao filme, o sujeito fez uma viagem até a sua infância, quando teve seu primeiro contato com o cinema, justamente com “Matar ou correr”. E, desde então, se apaixonou pela famosa dupla de atores.

Após o filme terminar, Deoclécio ainda buscou algo mais na televisão. Mudou de canal diversas vezes até que, sonolento, adormeceu.

Deoclécio acordou e buscou o relógio de parede. Quase meio-dia. Atordoado, levantou-se, cumprimentou o Lourival, encheu o pote de ração, trocou a água e lhe serviu o tradicional pão embebido em leite. Resolveu tomar banho. Quem sabe, assim, despertaria de vez?

Enquanto a água quente caía sobre o rosto, Deoclécio pensava na vida. Sentiu-se desolado, como se todas as ilusões tivessem lhe sido arrancadas. Foi aí que, de repente, arregalou os olhos e se lembrou do livro.

Saiu do box sem desligar o chuveiro, correu até a cozinha, olhou atrás da geladeira e pegou o exemplar, que parecia recuperado. Seco. Completamente seco, ao contrário do homem, que, apressado, nem se lembrou de pegar a toalha.

Deoclécio acabou escorrendo por conta da água que escorria por seu corpo. Caiu de bumbum no chão, com o livro ao seu lado. Foi aí que ele leu o título: “Despido de ilusões”, de um certo Eduardo Martínez.

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Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’ (Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos).

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