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Só o amor salva

Policial autista vive dia de cão em dia de plantão

Publicado

Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Reprodução das Redes Sociais

Mal cruzo o portão do pátio, percebo uma enorme aglomeração diante do antigo prédio da delegacia. Viaturas com aquelas luzes ligadas, num infinito giro. Estaciono na mesma vaga de sempre, debaixo de uma mangueira. Desligo o carro e espero alguns minutos. Preciso encarar aquele martírio mais uma vez.

Meu nome é Roberto Matos, mas meus colegas me chamam simplesmente de Beto. Não que sejamos íntimos, mas, talvez, o longo convívio os tenha enganado sobre isso. Na verdade, isso é apenas um detalhe sem importância, já que nem ligo se me chamam de Beto, Roberto, Matos ou qualquer outra alcunha.

Há quase 20 anos, certamente por um momento de insensatez, me tornei inspetor de polícia. Deveria ter seguido meu caminho de técnico de informática em outro órgão, onde meu dia a dia fosse apenas de computadores e a minha mente. É verdade que teria que conviver com vozes de outros funcionários, mas nada que se compare ao rebu que sou exposto nesses infernais plantões.

Para você, que talvez desconheça como é a minha rotina, vou fazer uma breve exposição. Como mencionei, sou plantonista e, por isso, sujeito à escala, que, no meu caso, se dá da seguinte maneira: entro às 8h e saio às 20h desse mesmo dia. Volto para casa e, no dia seguinte, entro às 20h e fico até as 8h do próximo dia. Daí, volto para casa e descanso por 72h e assim sucessivamente até me aposentar ou, então, que eu não consiga mais suportar tal situação.

Moro relativamente perto do trabalho, o que faz com que eu chegue em no máximo 30 minutos, dependendo do trânsito. Meus colegas me dizem que acordam por volta das 7h, tomam café da manhã, entram debaixo do chuveiro e, sem se apressarem, chegam à delegacia no horário ou, no máximo, 15 ou 20 minutos após. Não consigo fazer o mesmo.

Demoro a pregar os olhos já na noite anterior e coloco vários alarmes no meu celular, sendo o primeiro às 2h e os subsequentes a cada 20 minutos. Ergo meu corpo e vou direto para a cozinha, onde espremo dois limões em um copo de vidro. Completo com água e bebo.

Logo em seguida, começo a erguer meu corpo na barra fixa à porta que divide a cozinha e a sala. São inúmeras repetições, que fazem com que minha mente comece a concatenar as ideias. E, entre uma sessão e outra, assim que se passam 30 minutos, escovo os dentes.

Retorno para a cozinha, onde coloco água na mesma panela e a deposito sobre a mesma boca do fogão. Volto a erguer meu corpo na barra fixa e, antes que a água ferva, eis que coloco três colheres cheias de pó de café no coador de pano de sempre. Não demora, o café está pronto.

Despejo um pouco na mesma xícara que conhece meus lábios há anos. Meus pensamentos começam a se organizar com mais desenvoltura. Mentalmente planejo as próximas ações, enquanto a garrafa térmica cospe suas últimas gotas. Hora de tomar banho.

Depois do banho, escovo os dentes novamente, enquanto observo meu rosto magro, olhos profundos, como se quisessem entender aquele homem que os encara. Nenhuma palavra, apesar da umidade que, não raro, escorre por sua face.

Eis que, ainda dentro do automóvel, tento postergar outro dia de sofrimento. Mais alguns minutos, preciso abrir a porta e encarar aquilo tudo. Passo por um colega, que está saindo do plantão. Ele me cumprimenta e eu, sorridente, digo algo amigável. Prossigo no meu papel e finalmente coloco os pés na delegacia. Vozes ensurdecedoras ao meu redor. Se elas soubessem o que se passa na minha mente, certamente se calariam.

Sento na mesma cadeira de sempre, em frente ao primeiro computador da direita, ao lado da porta de grade. Antes que eu tenha chance de ligar o computador, alguém se aproxima e me pergunta se estou livre. Esboço um sorriso, enquanto a mulher, praticamente da minha idade, se senta e começa a tagarelar. Falo para ela aguardar um pouco até que eu ligue o computador.

A mulher, impaciente, tenta puxar conversa, enquanto eu procuro me fixar na tela, que demora a dar sinais de vida. Finalmente, as primeiras luzes brilham e sou transportado para um dia de sol na praia do Peró, onde costumava passar os verões nos longínquos anos 1970. Não sei quanto tempo fico nesse devaneio, até que alguém me toca no ombro. É o Sousa, policial da equipe que está saindo.

— Beto, você pode trocar o plantão noturno da sexta pelo noturno de domingo?

— Preciso ver nas anotações que estão no carro. Me mande uma mensagem, que te respondo mais tarde. Pode ser?

Sousa é um dos poucos que parou de me torrar a paciência para arrumar uma agenda eletrônica, que pode ser instalada no celular. Ele me dá um leve toque no ombro e nos despedimos, cada um com um sorriso, sendo o dele muito mais franco do que o meu.

Volto os olhos para a tela. O computador, ao contrário de mim, parece estar pronto para mais um dia de trabalho. Respiro fundo e começo a atender a primeira cliente do dia, que promete ser ainda mais doloroso.

Depois de ouvir todas as lamúrias da mulher à minha frente, chegam dois homens se acusando mutualmente sobre um golpe de um site de vendas da internet. Enquanto tagarelam, procuro me concentrar em algo mais prazeroso, o horizonte. No entanto, um homem esquálido encosta na porta de grades e me pergunta se o inspetor Lima já havia chegado. Respondi que ele só viria à tarde.

Volto minha atenção aos dois homens, que não param de discutir, até que peço para que os dois se sentem. Explico que eles eram vítimas, e que o golpista era outro, que provavelmente estava em outro estado. Eles me olham com cara de incrédulos, até que os dois se viram para mim e perguntam quase ao mesmo tempo: “O senhor também já caiu nesse golpe?”

Olho para aqueles rostos coléricos e respondo que não, mas conhecia como o golpe funcionava, tamanho o número de vezes que havia registrado situações semelhantes. Levo quase uma hora para terminar o boletim de ocorrência. Os sujeitos, agora mais calmos, agradecem e saem conversando amigavelmente. Não duvido que, dali, foram tomar uma cerveja.

Meu dia ainda estava longe de terminar. O próximo cliente é um senhor de quase dois metros, uns cento e não sei quantos quilos. Ele se senta e minha mente não para de imaginar que, logo, a cadeira não aguentará tanto peso e o homenzarrão desabará no chão frio da delegacia. Instintivamente, levo as mãos aos ouvidos, mas nada acontece. A cadeira tem lá seu mérito. Apesar de capenga, parece ser de bom material.

Pergunto para o homem qual o motivo de sua ida à delegacia. Antes não tivesse perguntado e, melhor ainda, antes tivesse mantido as mãos nos ouvidos. A sua voz me reporta a uma araponga. Não consigo prestar atenção nas palavras, mas apenas no irritante som. Quero fugir dali e, então, me levanto e digo que preciso ir ao banheiro.

Levo não sei quanto tempo, até que, recomposto, retorno. Por sorte, o Geneci, colega de equipe, estava atendendo o senhor Araponga. Afinal, o sujeito queria apenas registrar o extravio da sua carteira de motorista. Mal me sento, o Geneci entrega o boletim de ocorrência para o cliente, que agradece e, ainda bem, sai para bater asas em outras paisagens.

Outras tantas situações caóticas acontecem ao longo do expediente. Finalmente, é hora de recolher os trapos e voltar para o meu refúgio. Entro em casa, minha mulher me pergunta como foi o plantão. Não tenho vontade de responder, mas me esforço para sorrir. Beijo-lhe a face e me sento no sofá por quase meia hora.

— Vai tomar banho agora, Beto?

Levanto meu corpo carcomido e vou em direção ao banheiro. Debaixo do chuveiro, volto meu rosto para a água que cai morna. As lágrimas são levadas, nem sei se foram notadas pela minha esposa, que está ali com a toalha na mão. Saio do box e Laura me cobre como se eu fosse um bebê. Ela me beija os lábios e me diz: “Vai ficar tudo bem. Eu te amo!”

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