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Moral semântica

“Políticos e fraldas devem ser trocados pela mesma razão”

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto de Arquivo/Reprodução iStock

Nos momentos em que esqueço o peso da idade, gosto de prosear com Morfeu, o deus do sono, segundo a mitologia grega. Assim como seu pai Hipnos, Morfeu dispunha de grandes asas capazes de o fazer vagar silenciosamente pelos mais distantes lugares da Terra. Em proporções infinitamente menores, é o que faço em minhas viagens psicodélicas, mas sem alucinações baratas. Nelas, ouço bem mais do que falo. E quando falo sou sucinto a ponto de deixar dúvidas a respeito da seriedade da resposta. Como diz Zeca Pagodinho, malandro é o pato, que já nasce com os dedos colados para não usar aliança.

Nem tão perspicaz, mas também astuto, o Rei Charles da Inglaterra definiu como ninguém o dono de uma sauna: “Ele é o preguiçoso, pois vive do suor dos outros”. Em minhas andanças noturnas já fui condutor de bonde, porteiro de casa de lenocínio, gerente de dancing sem normas e até psiquiatra. Especificamente nessa área, durante as tratativas, tenho medo somente daqueles interlocutores que exigem posicionamentos sérios para questões banais, isto é, os que exageram nos problemas. Às vezes, o surpreendido sou eu.

Em uma dessas consultas hipotéticas e sonolentas, fui procurado por um “cliente” que se dizia perseguido por alguém que se escondia regularmente sob sua cama. O caso era grave, pois o paciente afirmava que, quando olhava sob a cama, o perseguidor estava sobre. Para cima, para baixo, para baixo e para cima só pode ser coisa do capetão. Decidi tratá-lo durante dois anos, divididos em três sessões semanais. Na camaradagem, resolvi cobrar R$ 120,00 por sessão. Passados seis meses e já esquecido do sujeito, eis que o encontro em uma das tumultuadas ruas da cidade.

A pergunta que não podia calar foi das mais simples: Por que você não me procurou mais? A resposta que me transformou de psiquiatra em paciente também veio de forma simplória: “Um sujeito desconhecido me curou por dez reais”. Meio entre os dentes, fiz a única indagação pertinente para aquele encontro casual: Como? “Ele cortou os pés da cama”. Resumindo o pó de mico em mico em pó, precisamos reconhecer que nem sempre os problemas sérios exigem soluções sérias.

Embalado por Morfeu, busco não me envolver com políticos de naipes municipais, estaduais e federais. Por meio da essência física, visitei noite dessas uma barbearia. Não era uma barbearia qualquer. Nessa, o profissional estava em uma semana de prestação de serviços comunitários e a promessa era de trabalhar de graça. Não cobrou de um florista e, como prêmio, no dia seguinte foi presenteado com um buquê de rosas e um cartão de agradecimento. Usou do mesmo gesto com um padeiro, do qual recebeu um cesto de pães, tortas e outro cartão de agradecimento.

O terceiro cliente se identificou como deputado federal. Ao pedir para pagar, o barbeiro repetiu que não podia receber, pois estava na semana comunitária. Impedido de pedir para superfaturar a nota, o parlamentar foi embora. No dia seguinte, ao abrir o estabelecimento, o rapaz deu de cara com 584 deputados do centro, da direita e da esquerda em fila indiana para cortar o cabelo de graça. As duas histórias têm uma moral semântica e outra lógica. A primeira é que até a araruta tem seu dia de mingau. Para contextualizar a segunda, nada melhor do que recorrer aos préstimos do escritor português Eça de Queiroz: “Políticos e fraldas devem ser trocados frequentemente e pela mesma razão”.

*Wenceslau Araújo é editor-chefe de Notibras

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