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 ONDE ESTÁ A FELICIDADE?

Pôquer, fumaça, malhação e finitude

Publicado

Autor/Imagem:
J. Emiliano Cruz - Foto Francisco Filipino

-Cartas?

-Duas!

-Três para mim!

-Quero duas!

-Uma!

Como ocorria todos os fins de semana, estavam sentados há dez horas jogando aquele pôquer interminável. Uma densa nuvem de fumaça formatada por cigarros e charutos intermitentes pairava acima das cabeças, cinzeiros, fichas, canecas de cerveja, copos de uísque e pedaços adormecidos de pizzas.

-Passo!

-Eu dobro!

-Pago para ver!

-Seus vinte, mais quarenta!

-Seus quarenta, mais oitenta!

-Pago para ver!

Repentinamente, um garoto entra na sala com um prato na mão.

-O que tem aí, menino?

-A tia Jussara pediu para entregar um pedaço de bolo para o senhor, tio!

-Ôpa, já vi muito bolo de tia com ases dentro!

-Deixa ali na mesa do lado, garoto! Gente, estou cansado e com fome. Vou sair um pouco da mesa para comer o bolo.

-Ninguém sai, ninguém sai! Outro garoto entra na sala.

-Minha mãe quer saber se o senhor vai mandar o dinheiro para a feira.

-E quem é a sua mãe?

-Ué…é a sua mulher!

-Ah, aquela! Diga para ela que estou com uma quadra de ases na mão…e como ninguém vai ser louco de querer ver, logo iremos embora com os bolsos cheios.

-Só se esse baralho tiver seis ases, porque dois estão comigo!

-Diz prá ela que o cachorrão falhou.

-Hora das cartas na mesa, trinca de reis!

-Sequência!

-Full house!

-Sorry, amigos, quadra de damas! Vem para o papai, lindo bolo de fichinhas abençoadas!

-Pessoal, já é de manhã, acho que para mim deu!

-Ninguém sai, ninguém sai!

Duas horas depois, cinco mulheres entram no recinto de ambiente quase irrespirável.

Tateando por causa da fumaceira, elas se aproximam da mesa para identificar e recolher os respectivos companheiros que, quase desmaiados e com os olhos esbugalhados, incrivelmente ainda conseguiam se manter sentados.

Na segunda-feira seguinte, os cinco amigos se encontram na hora do almoço:

-Gente, temos que tomar vergonha na cara!

-Verdade! Dessa vez exageramos, né?

-Assim não vamos durar muito, já não somos crianças.

-Pinguços decadentes de meia-idade é o que somos, você quer dizer.

-Concordo com todos, demos um vexame além da conta…mas o que vocês propõem?

-Eu proponho o Paulão!

-Alvoroçados, todos perguntaram simultaneamente:

-Que Paulão???

Oliveira, o autor da proposta, explicou:

-É o personal do meu irmão. Ele dá treino para uma turma no parque Ibirapuera três dias por semana. Os outros quatro se entreolharam, sentindo ao mesmo tempo um frio na barriga.

-Você quer dizer…pararmos com o nosso pôquer semanal e nos dedicarmos a recuperar nossa boa forma? questionou Siqueira.

-Recuperarmos a nossa saúde adotando bons hábitos, falou Mendonça, apoiando a ideia de Oliveira.

-E esse Paulão, é bom no que faz? Perguntou Vieira.

-É o melhor! Além de ser fisicamente uma rocha e um monumento de saúde, ele também é um filósofo de inspiração estoica que motiva maravilhosamente todos os seus pupilos para entrarem na linha, respondeu Oliveira.

-Então tá, por mim eu topo. A Jussara, minha namorada, já deu um ultimato para eu me emendar, confessou Cerqueira.

-Então fechou! Se todos estão de acordo, vou marcar com o Paulão para começarmos na próxima quarta, finalizou Oliveira.

Na quarta-feira, às sete da manhã, estavam todos no parque vestindo abrigo esportivo para a primeira sessão com o professor Paulão.

Emitindo uma voz de trovão e transmitindo um entusiasmo digno de Catão, o romano, Paulão iniciou a sua fala motivacional:

-Hoje temos mais cinco gladiadores da saúde e da boa forma na nossa equipe. Por favor, apresentem-se, rapazes! Após as apresentações dos cinco ex- jogadores de pôquer, o professor deu início à aula do dia. Enquanto orientava os alunos nos exercícios e movimentações, Paulão perguntava e os pupilos respondiam imediatamente em uníssono, sempre em altos brados:

-Cigarro?

-Mata!

-Cerveja?

-Mata!

-Uísque?

-Mata!

-Carne gorda?

-Mata!

-Pizza?

-Mata!

Passadas três semanas, como era de se esperar, os novos alunos estavam cheios de dores nos músculos e nas articulações. Entretanto, encharcados de orgulho pessoal e imbuídos da mais alta elevação espiritual, já começavam a se sentir integrados ao virtuoso ideário do super professor e inspirador guru.

As noitadas de pôquer e suas emoções, regadas a tudo o que era proibido e pecaminoso, já pareciam lembranças um tanto distantes e dispensáveis. Sem dúvida, Paulão iria redimi-los definitivamente… pela dor, pela abstinência e pela penitência.

Após mais um fim de semana sabático, os cinco amigos chegaram ao parque animados e ansiosos para mais uma dolorida e redentora sessão de purificação. Entretanto, não avistaram Paulão, o que era bem estranho, pois a sua figura se destacava fisicamente a qualquer distância em meio a qualquer grupo. O que poderia ter acontecido, preocuparam-se.

Chegando mais perto, viram Janice, a fiel assistente de Paulão, chorando copiosamente e sendo consolada por alunos-discípulos do mestre.

-Gente, o que houve? perguntou Oliveira, aflito.

-O mestre…o Paulão…tentou falar um dos alunos, sem conseguir concluir a frase.

-O professor Paulão morreu, ataque cardíaco, conseguiu balbuciar a inconsolável Janice. Perplexos, os cinco amigos se entreolharam, parecendo estarem sendo abduzidos por um alien impiedoso. Com a inacreditável notícia alugando um duplex nas suas mentes, retiraram-se, conservando um silêncio mais do que obsequioso, até que Oliveira pesarosamente filosofou:

-Somos todos finitos!

-Pôquer na sexta? arriscou, Siqueira.

-Para falar a verdade, eu estou com saudade disso, confessou Mendonça.

-Concordo, mas sem exageros, obtemperou Vieira.

-Hum…nossas mulheres vão chiar! Elas estão tão contentes com a nossa “reabilitação”!

-Podemos convidá-las para jogar canastra em uma sala ao lado, propôs Cerqueira.

-Fechado, chancelou Oliveira.

Na sexta-feira à noite, os cinco compenetrados jogadores tentavam se concentrar nas suas cartas. Não obstante, deveras preocupados, escutavam risos irônicos, comentários não muito católicos e até xingamentos nada republicanos vindos da sala ao lado:

-Bati!

-Juram que ela bateu? Hahaha…chupem que é de uva, otárias!

-Tá muito fácil! Ganhamos mais essa, parceira!

-Júlia, sua anta acéfala! Quem é que bate quando a parceira está com o morto na mão?

-Alto lá, Beatriz! Anta acéfala é a mãe!

-Olha o nível, senhoras! Sem botar a mãe no meio!

-Não estou aqui para ouvir isso, Jussara, vou sair do jogo!

-Ninguém sai, ninguém sai!

Ainda distribuindo as cartas, Oliveira, o filósofo da ala masculina, elaborou:

-Felicidade? Esqueçam! Vamos curtir os momentos felizes possíveis!

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