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Odeio, logo existo

Por que conteúdos neonazistas se proliferam nas redes sociais?

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Autor/Imagem:
Flávia Villela/Via Pátria Latina - Foto Reprodução

Transfobia, misoginia, racismo, xenofobia: quanto mais odiável, mais engajamento tem um conteúdo nas redes sociais. Estudiosos concordam que o cerne do problema está na perda do sentimento de coletividade por parte da sociedade, substituído pelo individualismo exacerbado que vê nas minorias a causa de todos os fracassos pessoais.

“Você demoniza o outro para se autoavaliar positivamente. Logo, se não fossem essas pessoas horríveis, esses monstros morais, se não fossem os judeus, se não fossem os negros, se não fossem os gays, a gente estaria bem no mundo de hoje”, comenta o professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Paulo Vaz.

O pesquisador tem se debruçado nos últimos anos sobre temas relacionados ao discurso de ódio. Ele avalia que o neonazismo na contemporaneidade atrai muita gente, pois reforça a ideia de que o indivíduo não é bem-sucedido, é fracassado, porque está sendo prejudicado por outros grupos.

Pondera ainda que, diferentemente de países como os da Europa e dos EUA, em que os imigrantes são os principais bodes expiatórios dos problemas sociais e econômicos no Brasil, os alvos são principalmente as minorias sexuais, as feministas e a população negra.

“Aqui no Brasil o que incomoda é quando o Estado age em prol de minorias, com ações afirmativas de direito e de respeito a esses grupos”, defende ele.

A religião também dá uma série de respostas para fracassos individuais, pontua Vaz, na lógica da teologia da prosperidade, que se fortaleceu nos anos 1980, nos EUA, e hoje está muito presente no Brasil.

“É a fé do indivíduo que vence por si mesmo com o discurso neoliberal. A fé como forma de ascensão social, graças a Deus — e contra […], portanto, qualquer ação coletiva, [qualquer] auxílio do Estado.”

Essa corrosão do sentimento coletivo tem efeitos também nas plataformas virtuais, salienta Vaz que, diferentemente das telecomunicações, não têm função pública.

“Radicalização implica engajamento. O que importa para as plataformas é ter audiência, ter engajamento, e a radicalização favorece. Então o interesse em barrar conteúdo, se tem audiência, é mínimo”, explicitou Vaz. O exemplo mais recente e notório no caso brasileiro foi o ataque à conta da primeira-dama, Janja Lula da Silva. A plataforma musical Spotify removeu a página, mas não informou como o perfil conseguiu conta verificada.

A Polícia Federal (PF) identificou que um dos responsáveis pela invasão era dono do perfil “Maníaco” e produzia músicas sobre supremacia racial e temas afins em várias plataformas, com selo de artista verificado e média mensal de mais de 4 mil ouvintes.

Janja se pronunciou na terça-feira (19) sobre o assunto e destacou a importância de responsabilizar as plataformas, a fim de que “não sigam lucrando em cima do ódio”.

Para a pesquisadora em educação midiática, desinformação, raça, gênero e tecnologia Gabriela de Almeida Pereira, a construção de um ambiente virtual seguro e democrático demanda a regulação das plataformas e dos critérios claros:

“Sobre o caso da Janja, por exemplo, o Spotify afirmou que ‘as regras da plataforma deixam claro que não permitimos conteúdo que promova o extremismo violento ou conteúdo que incite à violência ou ao ódio contra um grupo’. Mas isso não é suficiente, visto que o rapaz citado tinha perfil ativo, no qual publicava conteúdos de ódio contra mulheres e negros, com uma média de 4 mil ouvintes mensais”, frisa a especialista.

A censura de conteúdos pontuais, como os pró-Palestina, no atual conflito entre Israel e o grupo Hamas, também é reflexo de atividades praticadas por empresas privadas, afirma Vaz, sem compromisso com a questão pública, preocupada apenas com a imagem:

“Tem o lobby pró-Israel, muito poderoso, por exemplo, nos Estados Unidos. Antes de haver a guerra, não havia preocupação com esses discursos. Então, claramente, é uma preocupação com a imagem. Se não não for prejudicar a imagem deixa o nicho existir, deixa a audiência existir”, comenta o professor da UFRJ.

De acordo com ambos os especialistas ouvidos, estudos revelam que os espaços de jogos on-line são ambientes férteis para atrair jovens para grupos com ideias neonazistas.

“Há desde o uso de códigos para abordar temas específicos e espalhar mensagens com conteúdos de ódio até falas mais explícitas. Para a produção de conteúdo e um consequente espelhamento dos atos fora do ambiente virtual, há, para além das músicas, a construção de jogos protagonizados por personagens extremistas e a prática posterior dessas posturas em situações reais de violência contra negros e judeus”, exemplifica Pereira.

Segundo Vaz, jovens especialmente do sexo masculino têm tido dificuldade de lidar com mudanças morais e novas formas de sexualidade impulsionadas pelo feminismo e pelos movimentos LGBTQIA+. “Aí o neonazismo é prato cheio. É claro que essas pessoas vão ouvir o discurso que vai reforçar a crença delas”, frisa.

Como acabar esse ódio?
Para reverter isso, é fundamental um diálogo acolhedor com os jovens antes que escale para uma situação de violência, argumenta Gabriela, que também é diretora de Relações Institucionais da organização Redes Cordiais, que promove educação midiática, com o apoio de influenciadores digitais, para tornar o ambiente virtual menos hostil:

“Acreditamos que o canhão que esses criadores de conteúdo possuem é um meio fundamental para alcançarmos pessoas que estão consumindo informações por vias que muitas vezes as escolas, os pais, o governo e a imprensa não conseguem alcançar. Assim, buscamos afastar grupos mais vulneráveis de círculos odiosos, fortalecer a capacidade dessas pessoas de não cair em fake news e promover ambientes virtuais mais seguros e saudáveis para todas as pessoas”, explica.

Produzir dados e mapear esses conteúdos é o primeiro passo para tentar reverter esse problema, segundo a pesquisadora.

“O Brasil precisa investir em pesquisas sobre esses grupos, quais caminhos levam os jovens ao radicalismo e a grupos de ódio, como são recrutados, como resolver as fragilidades emocionais que são basilares para essa aproximação, entre outros fatores importantes”, destaca a especialista.

Políticas públicas de educação midiática, que promovam o diálogo, o acolhimento e a saúde mental de educadores e jovens também são necessárias e urgentes, acrescenta.

Segundo ela, uma iniciativa exitosa que deve ser replicada foi lançada no início do ano pela Secretaria de Políticas Digitais da Presidência da República, que vem produzindo materiais de combate à violência nas escolas e diretrizes sobre educação midiática em escolas de tempo integral.

“Um problema complexo como esse precisa de ações que envolvam a sociedade civil, o governo, as plataformas, os educadores, os pais e responsáveis e, claro, os jovens. Esses grupos que estão mais vulneráveis e expostos a conteúdos de ódio precisam ser ouvidos e fazer parte da construção de soluções”, conclui Gabriela Pereira.

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