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Direito à vida

Povo quer circo, mas cansou de ser o palhaço

Publicado

Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo

Desde a descoberta, em 1500, o Brasil é mundialmente conhecido como uma mistura de cores, raças, credos, classes sociais, religiões e ideologias políticas. Entretanto, o bordão “Tamo junto e misturado”, comum em comunidades, não passa de brincadeira iniciada pela molecada de bairros periféricos e que nem sempre alcança os mais velhos. Na teoria, a expressão, dita em tom descontraído, soa como estamos unidos, incorporados, conciliados e juntos, independentemente das dores, medos, decepções, alegrias, tristezas, expectativas e conflitos. Muito distante da realidade, a prática comprova diariamente que, como seres imperfeitos, podemos até estar juntos, mas jamais misturados.

No futebol, nos dividimos até quando o clube de coloração ou escudo antipáticos enfrenta equipes de outros países. Qualquer um de nós já viu flamenguistas, vascaínos, palmeirenses, tricolores, corintianos, gremistas, atleticanos e colorados torcendo pelo coirmão, ainda que o adversário seja argentino. O problema brasileiro dos dias atuais é a divisão política, muito mais danosa do que um carcinoma metastático. Se tratado a tempo e corretamente, o câncer tem cura. Já a doença ideológica, além de transmissível, lembra uma infecção generalizada, isto é, atinge mente, coração, alma e órgãos da importância do fígado, fundamental para excreção de substâncias tóxicas.

A política pós-Luiz Inácio ainda não foi devidamente metabolizada por Jair Bolsonaro, que pensa como líder eterno, embora tenha vencido apenas uma disputa de vertentes. O país é o mesmo, a bandeira continua predominantemente verde e amarela e os eleitores (vencidos ou vencedores) mantiveram seus títulos aptos para futuros pleitos. Em síntese, o cargo de presidente é eletivo, consequentemente temporário. Estar no poder não significa se perpetuar na cadeira presidencial. Um dia ela quebra ou, o que é mais comum, seu ocupante perde o verniz. Quando isso ocorre, o rei acaba nu. É a aplicação mais didática da derrota: rei morto, rei posto.

Foi-se o tempo em que os mais velhos tinham prazer em votar, orgulho em mostrar o título devidamente registrado e a certeza do dever cumprido quando elegiam o candidato preferido. Se o vencedor fosse um adversário, ninguém xingava, ninguém matava e ninguém morria. Com tranquilidade e perseverança, esperavam a próxima eleição. Ainda sem muita clareza, a possibilidade de derrota em 2022 já fez surgir histórias antecipadas de fraudes ou ameaças de rupturas antidemocráticas. Sinal do gosto amargo e do vampirismo político-partidário sem propostas, sem ideais e, o que é pior, sem partidos. Fulanizaram de tal forma a política que faltam os medalhões de outrora e sobram os aventureiros de sempre.

No fim do século passado ainda conseguíamos eleger candidatos preocupados com a saúde, educação, com o emprego e, sobretudo com a governança. Limitados no sentido amplo do termo, os eleitos nessas duas últimas décadas são incapazes de esconder a prioridade sobre projetos pessoais, o despreparo na condução administrativa da nação e a dificuldade em apresentar propostas perenes em benefício da integralidade da sociedade. É insuficiente se imaginar líder governando prioritariamente para uma parcela supostamente mais afinada com seus feitos ou malfeitos. Também é de mau agouro transformar debates em combates. Liderar deveria ser sinônimo de governança e não de lambança em nome do poder.

Moribundo desde meados de 2020, nas cordas por causa do agravamento da pandemia e claramente dividido em dois países, o Brasil de hoje não precisa de brigas, golpes, remédios aviados como salvadores, mas sem eficácia comprovada, tampouco de rezadeiras, pastores ou líderes espirituais sem competência. O povo quer parar de morrer, cobra vacina, exige mais emprego e pede respostas rápidas e firmes sobre o histórico desarranjo da economia. Por enquanto, apenas negacionismos e desgastes diários de um lado e, de outro, dúvidas, muitas dúvidas. O palco está montado. Resta às companhias montar suas trupes e torcer por uma boa bilheteria. Os dois lados sabem que, sem público, não há espetáculo. Chega de monólogos e de textos e discursos capengas. O brasileiro quer circo, mas não admite mais lhe sobrar apenas o nariz do palhaço.

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