Geni
Prosa
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A tarde caía lenta sobre a Rua Augusta quando entrei na livraria, fugindo da garoa fina que insistia em molhar o asfalto. O cheiro de papel velho me abraçou como uma avó que não vejo há anos. Fui direto à prateleira de literatura brasileira, procurando um nome que não encontrava nos catálogos de sempre. Lá estava: Becas Negras, de Geni Guimarães. Abri ao acaso e li: “Minha mãe dizia que a gente nasce com um destino, mas eu nasci pra desmentir o dela.” Fechei o livro. Respirei fundo. Era isso. Era exatamente isso.
Geni não é nome de capa de revista, mas deveria ser. Nascida em 1936, em São Carlos, ela cresceu entre o café e o algodão, entre o silêncio das mulheres que trabalhavam dobrado e o barulho das máquinas que engoliam sonhos. Professora, contista, romancista. Escreveu sobre meninas negras que estudam à noite, que carregam livros na cabeça como se fossem coroas. Em A Cor da Ternura, ela não fala de infância. Fala de sobrevivência disfarçada de brincadeira. A boneca de pano que a menina ganha não tem rosto e isso é metáfora, mas também é verdade. Quantas de nós não tivemos rostos nos brinquedos, nas histórias, nos espelhos?
Passei para outra prateleira. Olhos d’Água, de Conceição Evaristo. O livro parecia me olhar de volta. Lembrei da vez em que a ouvi numa mesa-redonda: “Eu não escrevo para ser incluída. Eu escrevo porque já estou aqui.” Naquele dia, ela usava um turbante amarelo que parecia sol. Contou que, quando criança, via a mãe lavar roupa no tanque e pensava: “Um dia vou escrever sobre essas mãos.” E escreveu. Escreveu tanto que as mãos da mãe viraram rio, viraram mar, viraram o Brasil inteiro.
Do lado, Lélia Gonzalez: Por um feminismo afro-latino-americano. Lélia não era só escritora. Era antropóloga, psicanalista, ativista. Falava com sotaque baiano e teoria francesa na mesma frase. Dizia que o racismo no Brasil é como feijoada: todo mundo come, mas ninguém assume o tempero. Ria alto. Morreu cedo demais, em 1994, mas deixou um legado que ainda lateja: a ideia de que o feminismo branco não serve pra quem carrega o peso de três séculos de senzala.
Saí da livraria com três livros na sacola e um nó na garganta. Na rua, uma menina negra passava com fones de ouvido, cantando baixinho. Tinha o cabelo crespo preso num coque alto, mochila nas costas, tênis surrado. Parecia saídas das páginas que eu acabara de ler. Pensei em Carolina Maria de Jesus, que catava papelão pra sustentar os filhos e ainda encontrava tempo pra escrever. Pensei em Miriam Alves, que transformou o sarau num ato político. Pensei em todas elas, as que estão nos livros e as que ainda vão escrevê-los.
O ônibus passou lotado. Entrei mesmo assim. Sentei perto da janela e abri Becas Negras de novo. Li uma frase que Geni escreveu sobre a avó: “Ela não sabia ler, mas sabia contar histórias que faziam o tempo parar.” Fechei os olhos. O Brasil inteiro cabia ali: na voz de uma avó analfabeta, na pena de uma escritora que ousou ser, na menina do ônibus que talvez, amanhã, escreva o próximo capítulo.
Cheguei em casa. Coloquei os livros na mesa. Acendi uma vela. Não era ritual. Era só gratidão. Por elas. Por nós. Pelo Brasil que ainda não se viu inteiro, mas que já começou a se escrever linha por linha, mulher por mulher, voz por voz.