TRAGÉDIA SUBURBANA
Quando a lei matou o papagaio
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Esta história aconteceu num subúrbio carioca, há coisa de uns vinte anos mais ou menos, e já não encontro ninguém que lhe possa atestar a veracidade, tampouco dizer que é mentira. Pois, assim, vai relatada com o maior número de detalhes que possa lembrar.
Ocorreu que uma senhora, de nome Dalva, morava numa casa antiga com o quintal bem grande. Era viúva fazia uns meses e, como estava triste e vivia só, uns compadres foram visitá-la e levaram uma surpresa: um papagaio, bem pequeno, com as penas ainda desarrumadas e o bico sem qualquer desenvolvimento, cara de assustado.
Dalva chegou a se assustar quando abriu a caixa de sapato onde o bicho viajara. Mas logo se apiedou do estado em que ele se encontrava, aquele pescoço magro, o olhar de espanto. Pensou, sem falar nada, o que iria fazer com a ave. E a comadre, intuindo, talvez, a dúvida, vendo a cara de surpresa da mulher, logo foi sugerindo:
— O Jorginho comprou esse louro na feira de Acari, Dalva. Você não imagina! Eu disse: que despropósito, meu filho, onde é que eu vou enfiar isso? Mas foi pensando em lhe dar que ele comprou. Você sozinha agora, aqui neste palacete! Ao menos terá com que se distrair.
Em princípio, é preciso que se diga que a comadre exagerava enormemente ao chamar de palacete a modesta casa de três quartos e quintal em Bonsucesso. Depois, que Dalva quase pôs os dois pra fora, com papagaio e tudo, pois achou aquilo tudo inoportuno. Agora que estava viúva e se tornara pensionista, a última coisa que queria era mais uma boca para alimentar — força de expressão, porque, com aquele biquinho miúdo, o papagaio mal comia. Mas é que, no fim da vida, o marido, sempre ranzinza e controlador, dera muito trabalho, e Dalva não queria saber de obrigações. Ansiava mesmo era sombra e água fresca.
O pobre bichinho estava lá, no entanto, recém-saído de uma casca de ovo, e era preciso dar-lhe um destino. Algo havia em seus olhos e na cabeça desproporcionalmente grande que inspirava uma vontade de cuidar em Dalva. Assim, vencendo a reserva inicial, aceitou o presente dos compadres e, fazendo troça com a memória do falecido, que se chamava Hildebrando, batizou o amigo de penas com o apelido do falecido, Badinho.
Badinho passou os primeiros meses entre um morre-não-morre, pois, certa tarde, Dalva fora ao banco pagar umas contas e deixou a gaiolinha onde ele vivia pendurada na área, perto do tanque. Caiu uma chuva daquelas inesperadas, de verão carioca, e deixou Badinho completamente encharcado, tão molhado que pareceu até haver perdido as penas, empapadas que estavam. Teve de ser enrolado numa toalhinha de rosto, para secar-se convenientemente, enquanto fazia débeis ruídos de conforto na segurança dos cuidados prestados por Dalva.
Intimamente ela sentiu-se péssima por haver negligenciado, ainda que de maneira involuntária, aquela criatura que havia sido confiada a seus cuidados.
Prometeu silenciosamente que aquilo jamais se repetiria.
Badinho não só se salvou, como, alimentado a grãos de arroz e pão molhado, transformou-se num belo papagaio que, ao longo dos meses, foi se tornando cada vez mais íntimo e carinhoso com Dalva, a quem confiava a cabecinha para ser coçada.
Claro que, conforme crescia, foi preciso providenciar-lhe uma gaiola maior. Ao fim, Dalva mandara fazer um gigantesco viveiro sob uma frondosa mangueira de seu quintal, onde Badinho passava as tardes de dias inúteis a taramelar, imitando o som de outras aves que por ali passavam, e Dalva, sentada numa cadeirinha de vime, à sombra da mesma árvore, ia lhe ensinando falas humanas que Badinho, vez por outra, repetia animado.
O viveiro de Badinho, construído com estrutura de madeira e tela metálica de trançado fino, era coberto de telhas. Alto, permitia que Dalva entrasse por uma portinhola e limpasse o fundo de areia coada de rio, bem como, em pequenas prateleiras dispostas convenientemente, pusesse frutas e grãos variados, para seu verde amigo de penas.
Para que se divertisse, Badinho tinha poleiros, além de um tronco de árvore com alguns galhos que, instalado dentro do viveiro, permitia que ele subisse e descesse, se exercitando. A água, sempre fresca, era colocada em dois vasilhames de cerâmica, num dos quais a ave tomava demorados banhos, fizesse frio ou calor.
Aos poucos, Dalva passou a ver o bicho como parte indispensável de sua vida, que ganhava um sentido perdido enquanto ia cuidando do animal.
Ele divertia sua dona falando coisas engraçadas, cantando e mesmo produzindo sons sem nenhum sentido. A certa altura, Dalva descobriu, surpresa, que ele dera para imitar o apito do trem que parava a duas quadras de onde moravam, na estação local. Era a conta do trem soar, e o papagaio, apoiado num dos galhos do tronco em seu viveiro, ressoava igual:
— Fóóóóóinnnn…
Dalva caía na gargalhada, depois imitada por Badinho no mesmo tom.
Houve uma ocasião em que, olhando pela janela lateral da casa, Dalva reparou que o céu estava se fechando rapidamente, e pesadas nuvens ameaçavam desabar um toró daqueles. Ela lembrou-se imediatamente da roupa na corda, e foi aos fundos da casa para recolhê-la. Antes, chegou perto do viveiro do papagaio:
— Coitadinho do meu Badinho… Vai chover, e você vai ficar aí fora encolhidinho! Acho que vovó vai pegar você e trazer aqui pra dentro. Você não foge?
— AAAAh, coitadinho…, respondeu a ave.
Ao voltar-se para pegar as peças no varal, Dalva pisou em algo de consistência entre mole e arredondada. Olhou para baixo e, horrorizada, percebeu que havia sujado o pé direito e o chinelo no sangue de uma rolinha com a cabeça decepada. Teve nojo.
Correu para o tanque e, tirando o chinelo, lavou a sola. Pensou em quem, ou no quê, poderia ter feito aquilo com o pobre passarinho. Um gambá? Um menino com bodoque? Antes mesmo de concluir a tarefa que a levara para o quintal, foi para dentro de casa, andando desajeitada, limpar o pé no banheiro.
Deu para aparecer por ali o Barnabé, um gato enorme, desses amarelos, que sempre vinha da casa da vizinha, Dona Isaura.
Certa manhã, Dalva estava na cozinha, terminando de preparar o almoço, e ouviu o louro dando uma sequência de gritos esganiçados, completamente incomuns. Ela correu para acudi-lo no quintal e viu Barnabé agarrado à tela do viveiro, com suas unhas projetadas para fora, o pelo eriçado, tentando, sem sucesso, enfiar uma das patas dianteiras pela trama fina da tela. Badinho agitava as asas e mais gritava.
Dalva, branca de susto, correu para o viveiro gritando “psssit, saaaai, larga…”
— Passa daí, seu fedorento, não vá maltratar o meu Badinho.
Barnabé saiu em disparada, dando grandes pulos.
Dali para a frente, foi um desassossego. Dalva foi conferir, depois que o gato fugira a pinote, se as telas de arame do viveiro estavam bem presas à estrutura que lhe dava forma. Resolvera até chamar Cesinha, o faz-tudo que a ajudava com as manutenções que, vez em quando, a casa reclamava, para verificar se o refúgio da ave fora abalado pela força do gato, ou continuava seguro. Cesinha a tranquilizou.
Passaram-se os dias sem nova visita do felino, mas Dalva, sempre sobressaltada, ia ao quintal toda hora, ao menor ruído, ver se tudo corria bem com Badinho.
Numa tardinha de muito calor, sentada na cadeirinha de vime do costume, à sombra da mangueira, ao lado do viveiro de Badinho, Dalva, entre sonolenta e desligada, transitava os olhos por entre as linhas de um livro de André Luiz, enquanto os canarinhos amarelos ciscavam o milho picado que ela espalhara por ali.
Badinho, em silêncio, estava no fundo do viveiro roendo um biscoito que, de quando em quando, molhava na água do mesmo vasilhame de cerâmica no qual tomava banho.
De repente, surgindo não se sabe de onde, o gato Barnabé avançou por sobre os passarinhos e, num bote certeiro, pegou um dos canarinhos e passou correndo entre as pernas de Dalva, com o pobrezinho se debatendo preso em sua boca, dando um salto enorme até desaparecer pelo muro que dava na casa da vizinha.
Mal ela teve tempo de entender a cena, ainda gritou, desarvorada:
— Ah, gato malvado, eras tu a atacar os passarinhos! Eu te esgano, hein… Você não venha aqui!
Houve vários outros episódios em que Barnabé fora um visitante incômodo em sua casa, como numa vez em que Dalva foi pegar o regador de metal, que usava para molhar algumas plantinhas de uma horta, e havia xixi de gato nele, bem na alça. Noutra, era a própria horta que se encontrava revirada — o gato havia enterrado seu “tesouro” entre pés de couve… E Dalva começou a se aborrecer. Afinal, seu bicho não incomodava ninguém, não saía do viveiro para atacar a outros, e sentia que o gato era um invasor de seus domínios, um incômodo, e lhe ocorreu que a vizinha poderia ter mais cuidado, procurando manter Barnabé dentro de sua própria casa.
Isso foi se sucedendo até que, tomada de uma fatal resolução, Dalva saiu de casa e foi bater na porta da vizinha, desenrolando-se o seguinte diálogo:
— Pois não, Dona Dalva, tudo bem com a senhora?
— Não está nada bem, Dona Isaura. A senhora poderia ajudar a melhorar se fizesse o favor de prender seu bicho em casa. Ele vem sendo um incômodo. Revira minha horta, suja minhas coisas, ataca os passarinhos no meu quintal e, um dia, até tentou pegar o meu louro.
— Que bicho?
— Por favor, a senhora não se faça de sonsa, é aquele gato amarelo da sua casa.
— Ah, o Barnabé! Ele é da minha filha Sueli. Mas eu não sou sonsa não, é que a senhora me pegou desprevenida.
— Então a senhora fale para essa Sueli ter mais cuidado. Bicho se prende em casa, e não se tem para ficar dando incômodo para os outros. Tem que ter educação.
— Mas eu sei dar educação para as minhas filhas, a senhora é que está muito engraçadinha…
— Engraçadinha uma ova!
E aconteceu uma escalada na discussão entre as vizinhas, que passaram a gritar tanto uma com a outra, que até outras pessoas da vizinhança vieram à janela ver o que se passava. Foram usados termos pesados, que não vem ao caso repetir. A própria Sueli, suposta dona do gato, tomou parte da peleja e houve xingamentos mútuos. Um horror.
Dias depois da discussão, Dalva ainda ficava com a pele do rosto rubra e o coração batendo mais forte quando se lembrava da raiva que sentira de Sueli, de Dona Isaura, do gato e do fato de ter vizinhas tão abusadas. Tomava café da manhã na mesa da cozinha e reparou que o papagaio, falante àquela hora, achava-se meio quieto. Estranhou e foi observar. Já da porta da cozinha que dava para o quintal, seu coração gelou, e teve a sensação de haver caído por dentro. A portinhola do viveiro estava entreaberta. Teria sido ela a esquecê-la assim quando foi tratar dele de manhã cedinho? Era possível que talvez, num descuido, não tivesse fechado bem a tramelinha metálica que trancava, por fora, o acesso à casa de Badinho.
Ela entrou em desespero, pois o papagaio não estava lá dentro. Teria fugido? O gato da vizinha dera cabo dele? Ela pôs-se a chorar e a gritar, lamentosa:
— Badinho. Ah, meu Badinho, para onde foi você…
E chorava, chorava.
Começou a procurar, pelo chão do quintal, algum indício de que pudesse ter sido atacado. Uma peninha solta, a pegada de um gato, mas não viu nada. Apenas reparou, a certa altura, que Barnabé dormia, tranquilo, no muro de divisa entre os dois quintais, enrolado em si mesmo. Mas nada de Badinho.
Até que ouviu um grito característico. E, em seguida, o som do apito do trem imitado por sua voz inconfundível. E viu, entre incrédula e aliviada, que Badinho se encontrava no telhado da casa, perto de um galho da mangueira que para ele avançava. E entendeu o quadro. Provavelmente, por descuido, ela deixara a porta do viveiro aberta. O papagaio, esperto, aproveitara para fugir e explorar o ambiente.
O alívio durou uma fração de segundos, pois Dalva começou a se preocupar com que o papagaio fugisse e não voltasse, ou sofresse algum perigo. Barnabé estava por perto. E começou a falar:
— Vem aqui, Badinho, vem com a vovó. Não foge não. Olha, vem cá, eu te dou biscoitinho.
De cima do telhado, o papagaio, indiferente, taramelava, agitava as asinhas ao sol e, com o bico, coçava as próprias penas.
E a pobre Dalva insistia:
— Vem, Badinho. Vem com a vovó, vem, meu bonzinho.
E a ave olhou em sua direção, armou um voo e veio pousar exatamente em seu ombro, deixando Dalva cheia de satisfação e orgulho. Beijou-lhe a cabecinha, comovida pela façanha matinal do papagaio. Levou-o, com cuidado, para dentro do viveiro, onde ele mesmo galgou o tronco com galhos que lhe servia de brinquedo, e ficou lá, dizendo coisas incompreensíveis, arrematadas por um AAAAh, coitadinho.
Por dias, Dalva pensou que, talvez, se deixasse Badinho solto, ele poderia viver livre pelo quintal, subir e descer a grande mangueira, passear pelo telhado. Que era uma pena a pobre ave desperdiçar sua vida num viveiro, pois, ainda que grande e confortável, ele fora feito para voar e ganhar os espaços. Mas, apegada, teve medo. Principalmente de que Badinho, não acostumado a toda essa liberdade, pudesse se distrair e levar o bote de Barnabé, que não cessava de espreitar por ali, a despeito das solicitações feitas às vizinhas.
Seguiram os dias normalmente, Badinho em seu viveiro no quintal, a rotina da casa, eventuais visitas do gato, sempre enxotado, até que, semanas depois, alguém bateu à porta. Dalva foi ver. Eram dois homens de uniforme.
— O que os senhores desejam?
— Somos da Polícia Ambiental, senhora, recebemos uma denúncia que a senhora tem um animal silvestre em cativeiro, irregularmente.
— Não tenho nada silvestre, não, só o Badinho, meu papagaio.
— Este mesmo. Precisamos entrar e verificar. A senhora permite?
— Permito. Podem entrar, vou levá-los no quintal e mostrar como ele vive.
Inocentemente, Dalva franqueou a passagem aos homens da polícia, que deixaram uma viatura estacionada em frente à casa, com o giroscópio ligado, e foram até o quintal seguindo a dona da casa.
Lá chegando, olharam longamente o viveiro de Badinho, comentaram algo entre si, e, dirigindo-se a Dalva, decretaram:
— Senhora, a manutenção deste animal aqui é irregular. Vamos ter de autuar e recolhê-lo ao abrigo.
— Recolher? Como assim, moço? O Badinho é meu. Meu compadre Jorge é que me deu.
— Entendo, senhora, mas não pode. É crime ambiental.
— Crime? Como crime? Ele tem tudo de melhor. Come até talo de couve, fruta fresquinha. Só não passeia fora do viveiro porque tenho medo do Barnabé, aquele malvado.
— Senhora, é contra a lei manter animais silvestres em cativeiro. Infelizmente teremos de levar ele embora.
Dalva, aflita, entrou em desespero. Como levariam seu papagaio? E com ordem de quem?
— Ai, moço, não faça isso, não. É meu bichinho. Quem é que mandou fazer isso?
— Foi uma denúncia, senhora, não tenho a informação.
— Vê aí, moço, deve ter sido a Sueli ou a Isaura, aquelas diabas. Donas do gato.
— Realmente não sei. Abra a gaiola, por favor. Sales, pode recolher o animal.
O outro policial, subalterno, passou à frente de Dalva e, mexendo na tramela, abriu a portinhola do viveiro. Badinho, assustado com os homens desconhecidos, agitou-se e, mal encontrou uma oportunidade, voou por sobre a cabeça do policial e foi pousar no telhado, da mesma forma que fizera no outro dia.
— Pronto, agora ele fugiu e não volta mais, dissimulou Dalva.
Neste ponto, ouviu-se uma voz:
— Ô, seu polícia, é só ela chamar que o papagaio vem, até pousa nela.
Eram Dona Isaura e Sueli que, vendo o movimento, haviam subido em caixotes de seu lado do muro que dividia os quintais e, com as cabeças à mostra, observavam, indiscretas, a cena que se desenrolava na casa da vizinha.
Dalva virou-se para elas:
— Suas fofoqueiras, o que estão fazendo aí? Não têm o que fazer, não? Vão caçar serviço, vagabundas.
O policial subalterno virou-se para Dalva:
— A senhora chama ele?
— Chamo nada, elas são mentirosas, intriguentas. Ele fugiu, não tem remédio.
Mas o policial mais graduado falou ao inferior:
— Sales, na viatura há uma escada e um puçá. Vá buscar.
Armou-se uma confusão. Dalva segurou-se ao subalterno.
— Vai buscar escada nenhuma, deixa meu papagaio.
— Senhora, estamos apenas realizando nosso trabalho. Não somos nós que fizemos a lei, queira largar-me, por favor.
— Vocês não podiam nem entrar na minha casa sem ordem de juiz.
— Senhora, foi a senhora que abriu a porta e nos permitiu entrar. Sales, vá buscar o puçá. Peço que a senhora se contenha.
Enquanto o policial se desvencilhou de Dalva e foi ao carro cumprir a ordem, ela se voltou ao papagaio.
— Foge, Badinho, não fica aí, não, o moço vai te pegar.
Percebendo a agitação, Badinho batia as asas e taramelava forte, o bico estava aberto e agressivo. As vizinhas, fofoqueiras, entre interessadas e vitoriosas, ainda assistiam à cena de seu lado do muro.
O policial que ficara mexia numa grande prancheta, preenchendo um formulário. Dalva chegou perto dele.
— Coloca aí nesse papel que o papagaio é bem tratado, moço. E deixa ele aqui comigo. Isso é intriga dessas desocupadas.
O militar, impassível, continuava concentrado no papel.
Enquanto isso, com destreza, o outro policial já esticara a escada de alumínio até o telhado, e, vagarosamente, subira com o puçá preso ao cinto. Mas, pressentindo a aproximação do homem, Badinho se deslocara para o outro lado, inatingível por aquele ângulo, e subira no galho da mangueira.
— Sales, ele veio para a árvore.
— Diz pra ela chamar o bicho, moço, ele desce, interveio Sueli, de intrometida.
— Cala a boca, sua diaba, vai procurar o que fazer. Para de olhar minha casa.
Sales deslocara a escada em direção à mangueira, mas Badinho, livre e maroto, já havia se movido novamente para o telhado.
— Olha lá, seu polícia, o papagaio voltando pro telhado, advertiu Dona Isaura.
Dalva ficou transtornada, pegou um punhado de areia leve no fundo do viveiro e arremessou em direção às vizinhas, atingidas em cheio nos olhos.
— Vão aprender a não bisbilhotar na minha casa, suas raparigas.
O policial mais graduado foi em direção a Dalva e procurou contê-la. Vendo de longe a cena, Badinho, em voo rasante, veio direto sobre a cabeça do militar, gritando e bicando-o, fazendo um ruído agudo e ameaçador, como a defender sua dona.
O homem se defendeu com o braço, ao mesmo tempo em que tentava capturar a ave. Levou uma bicada.
— Sales, o puçá!
Mas o subalterno, desajeitado, deixara cair o instrumento no chão, e Dalva, num átimo, chutara-o para longe, levando o outro militar a tentar contê-la de novo.
— Por favor, senhora, não faça…
O papagaio, agitado, gritava, agora pousado no ombro de Dalva. Respirava rápido, e seu peito enchia e esvaziava de uma forma esquisita. Dalva foi levá-lo em direção ao viveiro, quando o policial graduado, num gesto rápido, pousou a mão sobre ele. No entanto, Badinho se esquivou, e abriu as asas, bem esticadas, dando tempo para Dalva desviar-se. E mais ele gritava.
O subalterno veio pelas costas de Dalva e, num segundo, jogou o puçá por sobre o papagaio, que foi capturado. A mulher jogou-se em cima dele.
— Devolve meu bicho, seu malvado.
Mas foi contida pelo militar mais graduado, que a segurou pelo braço, enquanto o outro levava Badinho, que gritava esganiçado, para dentro da viatura.
As vizinhas já haviam reaparecido com as cabecinhas intrometidas sobre o muro e continuavam a acompanhar a cena.
O papagaio foi acondicionado dentro de uma pequena gaiola, respirando a longos haustos, assustado. Fazia calor. Fechada a porta de trás do veículo, tudo ficou escuro, e o policial que o levara voltou para dentro, a fim de assistir ao outro que terminava a preencher o formulário da ocorrência, que Dalva se negava a assinar.
— Não assino nada, não me conformo. Vocês vão me pagar, dizia a dona da casa. E, dirigindo-se às vizinhas que assistiam à cena brutal, vaticinava:
— Vocês também, suas fofoqueiras. Hão de se ver comigo.
Maquinalmente, o militar com a prancheta em mãos repetia que era seu serviço, que sentia muito, mas nada podia fazer.
Dalva soltava amargas lágrimas pelos olhos, não sabendo o que faria sem seu papagaio. Um calor lhe subiu no peito, a boca amargou, a visão se obscureceu e, sentindo um leve torpor e uma dormência que lhe alastrava pelo braço esquerdo, começou a perder os sentidos, tombando ao chão do quintal.
Ao mesmo tempo, no interior escuro da viatura, caído no fundo da gaiolinha, Badinho dava os últimos suspiros e morria vencido pela exaustão.
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Daniel Marchi (@prof.danielmarchi) é editor-executivo de Notibras.com, onde, com Eduardo Martínez e Cecília Baumann, comanda o Café Literário. Carioca, é advogado e professor. Poeta, escreveu os livros “A Verdade nos Seres” e “Território do Sonho” (no prelo).