Festa de arromba
Quando bate a saudade eterna das trepidantes tardes dominicais
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Hoje acordei com vontade de lembrar de coisas boas. Por exemplo, do tempo em que para ser feliz bastava parar em frente a um aparelho de TV e assistir ao programa Jovem Guarda, apresentado nas tardes de domingo na TV Record de São Paulo pelos cantores e compositores Roberto Carlos e Erasmo Carlos, com apoio da ternurinha Wanderléa. Era uma época em que a Record era verdadeiramente uma emissora de TV. Idealizado pela agência Magaldi, Maia e Prosperi, o fenômeno midiático que arrastou multidões no início dos anos 60 foi criado com o objetivo de cobrir as transmissões ao vivo das partidas de futebol, prática proibida pela ditadura instalada em abril de 1964.
Interessante é que os próprios simpatizantes do arbítrio denominavam o futebol como o ópio do povo. Coisas da idiotice humana. O fato é que, denominando um programa de TV ou rotulando um movimento musical jovem, a Jovem Guarda carrega até hoje a aura ingênua de uma alegria genuinamente juvenil com suas músicas despretensiosas, mas que nos enchiam de sentimentos num período em que a felicidade era esperar pelas jovens tardes de domingo. A pedido dos blue caps do Renato, eu e a molecada de então tiramos os grilos da cabeça e decidimos embarcar na Festa de arromba do Erasmo. A ideia era tentar ver o carro vermelho do Bom Eduardo Araújo e, se possível, oscular a bochecha da Waldirene, a Garota do Roberto.
Alguns também se aventuraram no Coração de papel do agora sertanejo Sérgio Reis. Desconheço a avaliação de terceiros, mas, para mim, valeu o caguei que o ex-presidente Bolsonaro deu para ele. Com seus 3 milhões de telespectadores só em São Paulo, mais do que um estilo ou gênero musical, a Jovem Guarda transformou-se da noite para o dia em um modo de comportamento, de se vestir, de falar e até de andar. Dos machos mais velhos, quem nunca usou cabelos longos na testa e emplastrados com gumex, uma calça no formato boca-de-sino, cinto e botinha colorida? A indumentária feminina normalmente era composta de minissaia e botas de cano alto.
O golpe militar estava posto. Não havia para onde correr. Era aceitar ou morrer. Por isso, ninguém ficava lelé da cuca com a ausência da Pobre menina. Nosso negócio era papo firme, uma brasa, mora. Da estreia em 22 de agosto de 1965 ao derradeiro programa, em maio de 1968, a descontração e a histeria das jovens e trepidantes tardes de domingo não permitiam ilações sobre chifres, sofrências e crises afetivas e sociais como as corriqueiras tentativas de suicídio em casas de saliência. A festa não cessava. A maioria das letras era versão de hits do rock britânico e norte-americano e tinha temáticas amorosas, adolescentes e açucaradas. Nada mais do que isso. Era puro iê-iê-iê, uma clara alusão à expressão yeah-yeah-yeah, utilizada em profusão pelos Beatles.
Se realmente ocorreu, a suposta refrega da Jovem Guarda com a Bossa Nova e com a insurgente MPB (as canções de protesto dos festivais) não gerou nenhum inimigo. Pelo contrário. Ronnie Von, Jerry Adriani, Wanderley Cardoso, Adilson Ramos, Antônio Marcos, Os Vips, Leno e Lílian, The Fevers, Bobby de Carlo, Golden Boys, George Friedman e Sérgio Murilo podiam não ser tão bons como João Gilberto, Nara Leão, Dorival Caymmi, Dick Farney, Agostinho dos Santos, Pery Ribeiro, Johnny Alf, Tim Maia, Jorge Ben, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Wally Salomão, Tom Zé, Jards Macalé, Paulinho da Viola, Marcos e Paulo Sérgio Valle, Antônio Adolfo e Tibério Gaspar. No entanto, apesar de consideradas ruins e infantis por alguns, as músicas da época são infinitamente melhores do que as que ouvimos hoje.
Não participei da Conversa de Botequim com Noel Rosa, mas, como Um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones e saudoso do Broto legal, de Sérgio Murilo, tenho certeza de que, daqui a 50 anos, ninguém se lembrará de porqueiras como a Pablo, Anitta, Ludmilla, Belo, Jão, Zé de sei lá o que, Maiara, Maraísa e afins? De minha parte, continuarei ouvindo Nilton César e o Professor apaixonado, cuja procura pela Menina feia da Matinê só será esquecida quando ele, depois da Primeira lágrima e da viagem no Lady Laura, reencontrar Diana, perceber que não é mais o Lobo mau, o Tremendão, o Playboy ou o Doce de coco. Não quero que vá tudo para o inferno. Como “herdeiro” direto do movimento da Jovem Guarda tenho saudades do tropicalismo e do rock nacional, mas guardo pouco ou nenhum sentimento pelo sertanejo. Não nasci para sofrer.
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Armando Cardoso é presidente do Conselho Editorial de Notibras