Microcontos improváveis
Quando chegar a Era Pós-Tudo, viver livre será uma questão de referencial
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1. “Amor daltônico”
ELE: “Sendo dois, seremos um. Libertaremos sons pagãos de Hermeto à Zappa, passando por Villa Lobos e mergulhando em Schönberg. As noites serão eternas. Nunca mais brancas ou pretas. E muito mais coloridas…”.
ELA: Peraí, Beenhê, eu sou daltônica, lembra, amor?” O dia amanheceu com um arco-íris abraçando a cidade.
2. “Zás!”
Cérebro vagabundo, indefinível miolo circulador de galáxias. O chefe apita o trem. A dor rompe o limite, desanda. Trilha de sangue no trilho de aço. O salto de verniz espelha o sangue; o mundo espreita: menino moído sobre dormentes. Trilhos escarlates. Pernas trêmulas sobem o último degrau. Tranco. Estrondo. Vertigem. Vagões em movimento. Obsessão por histórias essenciais. É hora de reinventar contos para a mulher sobre pernas, sobre saltos. Sobressalto. Sabe que eu gosto muito de
você… Zás! Súbito, o homem vomita adjetivos pela janela.
3. “Ressaca democrática”
Há anos, seria chamado de “centrista”, “murista”, “indeciso”, “café com leite”. Sonhou no início da noite: “O que realmente importa é a consciência em paz e a ética da vergonha na cara. Vou lançar novo partido político, o PBS, Partido do Bom Senso”. Na longa madrugada, tudo permaneceria aprisionado a fanatismos e a ideologias superadas. Cunhou o slogan: “É preciso superar a mesmice”. Acordou apenas com uma intransferível ressaca democrática.
4. “Birutas”
Para o canhoto, a esquerda dele é à direita do outro. Já para o destro é o contrário. Cuidado. Prudência. Tudo é relativo. Não confunda Jesus com Genésio. Pensamentos ácidos, cortes rentes, reflexão fina. Não podemos birutar opções. É a hora dos ruminantes fundamentais. “Para frente e para o alto”, propunha o juvenil slogan. Então ficou decidido: a partir do dia 1 da Era Pós-Tudo, viver livre será apenas uma questão de referencial.
5. “Ciclones em construção”
Nós-povo. Massa. Turba. Multidão. Sonhos e sangue e carne e químicas. E ideias e sonhos. Nós-cegos. Lá fora o vento sopra e tudo dança. Mundo inverso da casa-luz que se habita. Violência de sons e silêncios. Música para surdos absolutos. E chumbo dos tempos. Moscas zumbindo mundos, tateando o vidro imundo da janela. Ciclones em construção.
