Alquimistas
Quando o elixir salvador vira água comum, sem gosto e sem perfume.
Publicado
em
Uma definição corrente de loucura é “repetir continuamente a mesma coisa, esperando chegar a um resultado diferente”.
Quem acredita nisso, não faz ideia do que seja um alquimista.
Natanael, químico paulistano aposentado, estava com 72 anos quando enveredou pela alquimia. Cientista pé no chão, ele sabia que a química tinha se originado desse saber obscuro, envolto em misticismo; e que mentes brilhantes, como Isaac Newton, orgulhavam-se de se declarar adeptos da Grande Obra. Mas isso era praticamente tudo.
A guinada veio quando folheava, certo dia, o livro “O despertar dos mágicos”, clássico do realismo fantástico escrito em 1960 pelo franco-polonês Jacques Bergier e pelo parisiense Louis Pauwels, e deparou-se com a passagem em que a prática de um alquimista é comparada à de um cozinheiro. Isso marcou Natanael, que se orgulhava – com razão – de sua habilidade na cozinha. A cereja do bolo foi a descoberta de que uma prática culinária universalmente difundida, o banho-maria, fora criada por uma célebre alquimista, Maria, a Judia, que viveu no Egito no século III a.C. São igualmente atribuídas a ela a descoberta do ácido clorídrico e a criação de vários instrumentos utilizados, ao longo dos séculos, pelos alquimistas do Ocidente.
Esse aspecto levou à decisão de Natanael. “Sou químico, portanto herdeiro dos alquimistas”, pensou. “E também um excelente cozinheiro.
Somarei essas habilidades na dedicação à Grande Obra”.
Ele não teve grande dificuldade para montar seu laboratório alquímico, em muitos aspectos idênticos ao utilizado pelos químicos do século XX. E apaixonou-se pela busca, em lojinhas obscuras, daqueles tipicamente alquímicos, como o atanor ou forno cósmico, destinado à obtenção da pedra filosofal. O dia em que adquiriu, bem barato, um atanor ainda em bom estado, em perfeitas condições de uso, chorou de emoção.
Também realizava, nos sebos da cidade, a caça a tratados herméticos ou textos de alquimistas renomados. Encantou-se com “O mistério das catedrais” e “As moradas dos filósofos”, publicados respectivamente em 1926 e 1930 por Fulcanelli, pseudônimo de um alquimista francês do século XX. E quando não encontrava o livro desejado, ora, redes como a Amazon existem para isso.
Restava uma última questão: utilizaria um codinome, como fizera Fulcanelli, ou conservaria seu nome de batismo? Decidiu-se a assinar seus trabalhos alquímicos como Natanael, que em hebraico tem o significado de “Presente de El/Deus”.
O químico tornado alquimista não pretendia enriquecer transformando ferro ou chumbo em ouro. E nem adotou o discurso meio Nova Era de que a transmutação alquímica era interior, uma espécie de iluminação. Suas metas eram outras, bem ambiciosas. Queria criar seres vivos a partir da matéria bruta e obter o Elixir da longa vida. “É, não seria nada mal rejuvenescer e viver centenas de anos”, dizia sempre a si mesmo, com um sorriso. Se a iluminação viesse, claro que seria bem recebida, mas não era o objetivo buscado.
Durante 15 anos, Natanael se dedicou aos esforços alquímicos, mexendo incansavelmente os materiais utilizados e alterando-lhes, de tempos em tempos, as proporções, como um hábil cozinheiro empenhado em personalizar uma receita complicada. Nada parecia acontecer, às vezes pensava em desistir, mas seguia em frente.
Certo dia, descia a escada rumo a seu laboratório, no porão da casa, quando tropeçou e quebrou a perna. Soltou um grito lancinante e, pior, começou a ter um infarte.
Talvez a dor física e a proximidade da morte servissem de catalisador para as transformações alquímicas. Seja como for, as coisas começaram a acontecer, em ritmo acelerado.
Caído por terra, uma perna quebrada em um ângulo impossível e o coração começando a falhar, Natanael não acompanhou o surgimento dos homúnculos, pequenos seres vivos que brotaram da matéria inerte. Não viu a cristalização, dentro do atanor, da pedra filosofal, com sua cor dourado-avermelhada. Não testemunhou a queda, gota a gota, nos alambiques de condensação, de um líquido de aroma inebriante, inesquecível, o elixir da longa vida. Bastaria beber uma só gota para curar-se da fratura exposta, recuperar a juventude e alcançar, se não a imortalidade, pelo menos uma vida muito mais extensa que a do comum dos homens. Mas não, estava impossibilitado de mover-se, e seu coração alternava galopes com períodos sem batimentos, cada vez mais extensos.
E então, assim como um prato perfeito desanda quando não é retirado do fogo, após estar pronto, a metamorfose alquímica começou a se desfazer.
Os homúnculos tornaram-se, de novo, materiais sem vida; a pedra filosofal perdeu sua coloração deslumbrante e enegreceu; e o elixir salvador tornou-se água comum, sem gosto e sem perfume.
Natanael morreu no chão do laboratório, sem saber do êxito de seus esforços. Mas, pelo menos, não soube que o sucesso – o presente de Deus – teve curta duração.