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Só meu

Raio-X da personalidade na hora de montar seu ambiente

Publicado

Autor/Imagem:
Gustavo Calazans

Sabe aquele receio que alguns dizem ter ao conversar com um psicólogo, de que ele os estaria avaliando e catalogando clinicamente? Apesar de achar isso uma bobeira – assim como é claro que dentistas não andam por aí vendo como são os dentes dos outros -, sempre tenho a impressão de que os arquitetos padecessem de um preconceito parecido.

Muita gente morre de medo de convidar um arquiteto para visitar suas casas temendo que, ao final da visita, possamos dar nota para o que vimos. Embora saibamos que essas ‘brincadeiras’ são uma besteira, de alguma forma são indícios de que, para o senso comum, um olhar atento – nesse caso, de um especialista – poderia desvendar algo de alguém ou de um lugar que revelasse segredos bem guardados.

E sim, as coisas podem de verdade ser reveladoras, assim como algumas de nossas atitudes também o são. Sem entrarmos numa maluquice de querer interpretar tudo e todos – por que bem sabemos que embora tudo possa ter suas razões de ser, nem sempre essas razões vêm ao caso – me peguei pensando que nossas casas guardam em si informações que contam aspectos preciosos de nós aos outros.

E talvez aos outros antes mesmo de contar a nós mesmos, que estamos ali submersos em nosso próprio universo particular e com uma certa hipermetropia perceptiva. Entrar numa casa e ver uma estante de livros e as suas características – a sua dimensão, os títulos que estão ali enfileirados, como estão organizados – pode indicar um tanto do gosto pela leitura daquela pessoa que ali vive, não?

Na minha casa, já há alguns anos, os livros são organizados por cor. E não, essa ideia não saiu da minha cabeça, eu provavelmente jamais teria pensado nisso. Um grande amigo, que numa época trabalhou comigo como produtor visual, pegava meus livros emprestados para fazer produções fotográficas e, quando os devolvia, brincava de arco-íris nas minhas prateleiras. Ficou lindo e eu, como bom esteta que sou, assimilei a arrumação.

Não posso dizer que esse sistema de organização não revele algo sobre quem sou, embora ele não tenha nascido da minha própria cabeça – e aqui vale lembrar que bons arquitetos são capazes de encontrar soluções que representam seus clientes. Nesse caso, meu amigo não-arquiteto foi bom intérprete de mim, o arquiteto em questão.

Lembro de já ter pensado que alguns poderiam me achar um tanto superficial organizando livros pela cor de suas lombadas. Como se o que me interessasse neles fosse apenas a qualidade cromática da sua superfície, pouco me importando o seu conteúdo – algo naquela linha da piada clássica de alguém que, querendo parecer inteligente, compra livros por metro para preencher suas estantes.

E sei que posso ser bem perseguido por essas coisas, talvez por que enxergue exageradamente o caráter simbólico das coisas – e daí extrapole essa crença e acredite que todos são assim. Incrível pensar que encucações como essa nos pegam de jeito. Lá estava eu, receoso do que pensariam de mim a partir de observações sobre o meu lar.

A libertação veio quando visitei o apartamento de um outro grande amigo e meu cliente, pesquisador, professor universitário e agora livre docente antes mesmo dos cinquenta anos, que também tinha esse mesmo fetiche – organizar os livros pela cor das lombadas, em prateleiras diferentes, o que fazia com que a estante parecesse um grande equalizador.

Que imagem mais linda era aquela, e ali estava alguém que certamente não poderia ser acusado de superficialidade. Reconhecer esse meu receio quase infantil foi fundamental para entender que somos sim atravessados pelo medo de que nossas casas revelem algo de nós, muitas vezes algo que não está ali, ou que esteja em alguma esfera, não em todas. Mas sobretudo, que nossa casa nos desnude diante dos demais. O mundo físico é o que é, quase impiedoso, e nesse espaço que chamamos de nosso, é o que queremos que ele seja. E claro que isso nos desvela. E não somos nós que somos superficiais, ninguém é. Somos todos poços de complexidade.

Superficiais podem ser as nossas conclusões, em julgamentos precipitados e observações pouco elaboradas ou com olhar raso para a profundidade desses poços. Inegável que há uma narrativa sendo impressa em nossa vida física, em nossos corpos e nos objetos que escolhemos ou permitimos que nos representem. E quanto mais lar for a nossa casa, mais fidedigna será a imagem projetada para o exterior.

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