Acabou sorrire
Recordo onde estava quando teve início o Tempo dos Sorrisos Pavorosos
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Dizem, nos Estados Unidos, que cada pessoa adulta se lembra onde estava e o que fazia no 11 de setembro de 2001, quando desabaram as Torres Gêmeas, atingidas por aviões. Quanto a mim, recordo com clareza onde estava quando teve início o Tempo dos Sorrisos Pavorosos, infinitamente mais grave que um ataque terrorista.
Era uma quinta-feira. Eu saía de um sebo (garimpar livros raros está entre meus esportes prediletos) e buscava um restaurante para almoçar, já eram quase 13h30. De repente, o rosto das pessoas, de todas que eu via, começou a mudar. Elas se esforçavam por sorrir – e era patético aquela empreitada coletiva para demonstrar cordialidade. Patético, não; pavoroso, assustador.
Por um momento, suas feições assumiam o aspecto de uma carranca do São Francisco, exibindo dentes enormes. Depois se transformavam, calibãs shakespearianos sem um pingo de inteligência no olhar, pobres idiotas que deixavam a baba escorrer pela comissura dos lábios perpetuamente escancarados. Essa mutação incessante da fisionomia, contraponto ao sorriso forçado, era pavorosa; mas o pior era o silêncio, não se ouvia uma voz, apenas falas previamente gravadas, transmitidas pelo rádio, televisão e outros meios eletrônicos. Não se viam postagens nos smartphones, até então onipresentes. Era como se todas as forças de cada indivíduo, todos os recursos de seu psiquismo, estivessem mobilizados para abrir e curvar os lábios e conservá-los naquele esgar obsceno.
Cambaleei até uma vitrine, olhei-me e vi, refletido, meu rosto habitual. Suspirei de alívio, mas logo veio um pensamento inquietante. “E se cada um, ao se olhar em um espelho ou algo semelhante, vê sua fisionomia de sempre, sem aquela careta?” Falei em voz alta:
– Deuses, será que também fui transformado?
Minha voz soou estranhamente alta em meio ao silêncio. Mas isso me tranquilizou, pelo menos ainda conseguia pensar e exprimir minhas reflexões, talvez fosse o único, em toda a cidade – não ousei pensar no país e no mundo – a não sofrer a metamorfose. Voltei rápido para casa, liguei a TV: nada, nenhuma notícia sobre a mutação. O “ao vivo” desapareceu da programação. As poucas tentativas de noticiário mostravam apresentadores de boca aberta, balbuciando sons sem sentido. Shakespeare escreveu, em Macbeth: “A vida (…) é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e vazia de significado”. Pois bem, os idiotas estavam ali, em trajes impecáveis, talvez tentassem contar uma história cheia de fúria, mas era impossível entender o que saía de suas bocas arreganhadas em horrível amistosidade. De qualquer modo, os ensaios de transmissão de informações logo saíram do ar.
No dia seguinte, saí cautelosamente de casa. Menos gente nas ruas, todos com uma careta nos lábios de músculos fatigados. Alguns, talvez percebendo que eu sorria com dificuldade – sim, tentei fazer como todo mundo, para não ser hostilizado – dirigiam-me um olhar inquiridor, com uma pitada de inteligência, como se perguntassem:
– Por que seu sorriso não se abre? Não quer ser amigo? Não gosta de nós? Você é um estranho, um Outro?
Eu me afastava rápido deles, antes que a curiosidade em seu olhar se transformasse em hostilidade. Porque pessoas que exibem os caninos podem facilmente dilacerar.
E assim vivo agora, vagando a esmo pela cidade cada vez mais vazia, falando sozinho – recurso para constatar que o fenômeno responsável pelo Tempo dos Sorrisos Pavorosos não me atingiu, não ainda. Tenho bastante comida, embora alguns enlatados estejam ultrapassando a data de validade, aparentemente produzir e distribuir bens é incompatível com o sorrir o tempo todo, em silêncio. Estou bem de saúde, posso ouvir minhas músicas favoritas, ler meus amados livros, mas não sei por quanto tempo a eletricidade chegará às residências. É um fim triste e surreal para nossa civilização, que morre sem guerras, sem pandemias, sem desastres climáticos. Morre com um esgar. Sou um estranho em uma terra estranha, um lúcido taciturno em meio a um mar de imbecis que mostram os dentes sem parar. Não sei quanto tempo me resta, nos resta. Não acabou chorare, como cantavam os Novos Baianos; acabou sorrire.