Redcap (Parte II)
Levando a mulher misteriosa até a rua Daniel Marchi, esquina com a travessa Lenzi
Publicado
em
A dama de preto silenciou, entretanto, não o fez por falta de argumentos. Ela sabia de tudo. Estava com ele sempre, em meio as suas angústias, lamúrias, prantos, alegrias e regozijos.
A chuva apertou. Redcap abaixou a aba do seu boné, na tentativa infantil de evitar se molhar. Talvez mais pela vergonha de sua última fala do que pelo fenômeno da natureza em si. A dama de preto não se ofendeu. Permanecia intacta, ilesa e com a mesma feição. Até o convidou para que ambos procurassem um lugar mais seguro e aquecido.
Diante da proposta, iniciaram uma caminhada rápida até a Rua Daniel Marchi, que dava de esquina com a Travessa Lenzi. Lá havia uma marquise com três metros de comprimento que serviria como porto seguro durante algum tempo. Esfriou abruptamente e a umidade prevaleceu. Tanto que já se via neblina se formando. Ao tentarem identificar a continuidade e as conexões entre as ruas e vielas, a missão se tornara basicamente impossível. O centro do Rio de Janeiro se tornou mais taciturno do que nunca.
– Que tempo maluco – ressaltou Redcap – Talvez seja hora de ir. Mas antes disso, eu queria saber quem é você e o que faz aqui. Por que tem uma mulher no meio da cidade e nesse horário? É maluca igual a mim, é?!
– Como já te disse, sou a sua consciência, Redcap. – ela disse, com tom de firmeza. – Pode me chamar assim, se desejar.
– Ótimo. Achei uma louca no meio da cidade. – disse Redcap, em tom debochado, enquanto jogava o cigarro que tentava acender no chão, declarando tacitamente a sua desistência.
A mulher não declarou nada. Apenas fixou seus olhos no dele e o encarou com tamanha profundidade, que ele sentiu que poderia ser assaltado. Terror de carioca.
Passada a sensação tragicômica, nasceu no coração de Redcap uma inquietação. Uma tontura tomou conta da sua mente e corpo. Não via mais nada além da neblina que se alastrava cada vez mais e tomava conta da ruela inteira. A dama de preto passou a ser vista de maneira turva.
– O que tá acontecendo comigo? – indagou, enquanto se apoiava em uma parede fria, com tintura bege desgastada e limo. – Me ajuda, ô! Não tá v-vendo que…que eu tô passando mal?! Ô, consciência!
Antes que pudesse iniciar os xingamentos direcionados a nobre figura feminina, Redcap adormeceu. Um sono tão forte que parecia ter sido encomendado pelo próprio Hipnos. Teria, finalmente, um sono de qualidade. Não se importaria se fosse um sonho ou um pesadelo que lhe visitasse nos reinos de Morpheus, contanto que ele dormisse em paz.
Para o seu engano, não era um simples sono, mas uma viagem para a sua própria mente. Ele viu a si mesmo em um mundo leitoso, esbranquiçado, sereno e minimalista, por assim dizer. Só havia a cor branca ao redor, como uma tela preparada para ser pintada. Desesperou-se. Gritou igual uma criança pela mamãe. Correu para todos os lados, mas como escolher qual lado diante do vazio infinito? Sentou e chorou.
– E então, Redcap? – ao seu lado surgiu a sua consciência – Ainda não acredita?
– O que você fez comigo? – indagou, com a face tomada pela cólera. – Eu só queria fumar meu cigarro em paz no dia do meu aniversário, porra! O que você quer comigo?
Pela primeira vez, a dama de preto, altiva como uma rainha, sorriu com todos os dentes a mostra. Um sorriso estonteante, que ganharia o coração de qualquer homem. Mágica. Estupendamente linda. Seus cabelos se moviam como se tivessem vida própria e brilhavam como turmalina cintilante e polida. Ela se aproximou e explicou, agora de frente para Redcap.
– Você se dá o aval do sofrimento e da reclamação, e ao perceber suas falhas, não tenta melhorar. Você mergulha em auto punição e flagelação emocional. Estou aqui para consertar isso. É um ultimato, Redcap.
Ele não respondeu. Sabia que aquilo tudo era verdade. Não iria contestar nem postergar o que eram fatos. Já tinha percebido isso há um tempo. Concordava com seu avô. Ele era mais do mesmo. Era morno. Um preguiçoso, pouco ambicioso e um doente emocional, que ao invés de achar soluções, mergulhava inteiramente nas dificuldades e problemas que deveria enfrentar. Até mesmo (e principalmente) aqueles que eram de ordem interior, onde ele mesmo era o objeto de enfrentamento e estudo.
– Tá. E aí? Quer que eu faça o que com isso? Quer que eu coloque o dedo na bunda e fique gritando enquanto peço desculpas pelos meus erros? – ele abriu os braços, como se fosse abraçar o Mundo e aumentou a voz – NÃO SEI SE AINDA NÃO PERCEBEU, MAS ISSO AQUI É UM VAZIO ABSOLUTO.
– Sim. Deixará de ser até você colorir tudo novamente. Estamos aqui para isso. Você reconciliará o seu coração para encontrar a sua paz. – ela explicou, enquanto falava pausada e serenamente.
Ele achou aquilo tudo muito bonito. Já estava em uma situação sobrenatural. O que mais poderia perder? Ora, pensou em arriscar. Poderia ser tudo um sonho, de qualquer forma.
– O que eu faço, então, consciência? – ele disse, revirando os olhos.
– Pense em seus pais.
– Meus pais?
– Seus pais, Redcap. – ela disse, fechando os seus olhos.
Redcap pensou em um milésimo de segundo em sua infância. Foi o suficiente. Ele nem tinha se concentrado. Sua mente procurou informações automaticamente, devido a citação sobre os seus genitores. Mas aquilo era o essencial para a dama de preto.
Uma mão sobre a sua cabeça. A dama de preto o tocou. Bastou um lapso temporal curtíssimo. O que se passou adiante mudou a vida e a perspectiva de Redcap. Ele estava de volta ao seu passado.
…………………………………………..
A parte III deste folhetim será publicada na quarta-feira, 23