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Livros mofados

Remexendo coisas, vive-se parte real da história

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Autor/Imagem:
Guilherme Martins - Foto Reprodução/PXHere

Desde criança, minhas primeiras memórias do meu tio-avô são de um homem turrão e sistemático. Quando fazíamos perguntas que ele considerava burras, logo soltava uma frase sarcástica que fazia com que nos sentíssemos envergonhados e arrependidos por termos aberto a boca. As janelas da sala do apartamento em que morava em frente à praia só podiam ser abertas por ele, quando assim desejava. Quando nós abríamos, ele logo vinha fechar para evitar a corrente de ar que se formava. O momento do jornal na TV era sagrado, e ai de quem fizesse algum barulho, que era logo repreendido.

Não gostava muito dele, apesar de amar visitar Santos e apreciar a vista maravilhosa do apartamento. Quando criança, o momento mais aguardado por mim era quando deixava montar a luneta, e eu passava horas observando de perto toda a vida da praia. As mulheres tomando sol, as crianças brincando na areia, os vendedores ambulantes passando e oferecendo seus produtos. A vida de centenas de pessoas se descortinava desavisada e sem pudor, sob as lentes da luneta, ao observador oculto, um pré-adolescente com seus 12/13 anos.

Certo dia, meus pais chegaram a Santos e meu tio parecia diferente. Rápido constataram que ele havia sofrido um AVC. Foi o início de uma longa e triste jornada de definhamento físico e mental daquela pessoa que era extremamente ativa. Todos os anos me chocava com a maneira como seu corpo e mente iam se autodestruindo. Próximo ao final de sua vida, mal conseguia olhar para ele, que havia se tornado quase um morto-vivo, cadavérico e fora de si.

Depois que morreu, a vastidão de seus pertences pessoais se abriu à família. Agora já não era mais necessário pedir licença para mexer em suas coisas, e, a partir desse momento, uma pessoa se abriu, ao menos para mim. Agora mais moço, comecei a vê-lo com outros olhos.

Infelizmente não pude acompanhar todo o processo de seleção, divisão e eventual descarte de seus bens pessoais, pois quem realizou essa tarefa foram meus tios e pais. Mas, no pouco que pude ter acesso, em cada pertence, em cada papel ou anotação guardados por aquele acumulador compulsivo, uma história se abria, e um novo tio-avô foi sendo construído aos que estavam vivos.

Em sua vasta coleção de livros, muitos clássicos da literatura, apesar de algumas bobagens também. Toda a obra de Freud, e alguns livros sobre psicanálise. Diversos livros sobre política apontavam que meu tio talvez tivesse sido comunista ou socialista, ou ao menos era muito próximo deles. Leu Lênin, textos sobre a revolução socialista na Rússia, muito dos grandes intérpretes do marxismo na Europa e no Brasil. A julgar pela biblioteca, não parecia ser ortodoxo, talvez fosse próximo ao trostskismo ou um comunista independente.

Os discos de vinil mostravam que ele adorava fox-trot e bossa nova. Tinha muita trilha sonora de cinema, também.

Na papelada que guardou, muitos panfletos de peças, encartes sobre shows teatrais que frequentou entre a década de 1950 e 1960. Com surpresa, certo dia achei um programa distribuído às pessoas que foram assistir ao show Opinião, do grupo de teatro Arena, seguramente um dos mais importantes da história do Brasil. Sim, em pleno governo militar – o encarte era de 1965 -, ele assistira a jovem Maria Bethânia, Zé Keti e João do Valle cantando canções que entraram pra história. Também tinha o programa de Liberdade Liberdade, outra peça histórica brasileira.

Afinal, quem era meu tio-avô? O que fazia da vida aquele técnico em contabilidade que trabalhou na Petrobras? Ninguém mais pode responder a essas perguntas. Meus avós também já faleceram e o estilo de vida fechado que meu tio levava fez com que seus sobrinhos nunca soubessem direito sobre sua misteriosa trajetória.

Faz oito anos que ele morreu, mas, ainda hoje, todos os anos surge algo novo das entranhas de seus objetos pessoais. Minha última descoberta foi triste: o resquício de sua biblioteca apodrecia em um canto da garagem do prédio. Quando fui avisado pelo porteiro, desci correndo e encontrei algumas pilhas de livros embolorados, que já haviam, há algum tempo, virado a moradia de dezenas de cupins.

O destino dos livros parecia dialogar com o que sei da vida de meu tio-avô: haviam se tornado fragmentos incompletos carcomidos pelo tempo. Ainda assim, muita coisa foi salva, e, toda vez que abro um livro ou vejo uma anotação sua, sei que carrego comigo um pouco dele, um pouco de sua trajetória e de seu conhecimento, e compreendo que essa é a beleza e o sentido da vida: a possibilidade de viver através dos outros.

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