Prazer solitário
Renato, somente para seus olhos
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Não, não é o que vocês estão pensando.
Renato gostava de esportes, mas não a ponto de comparecer a um estádio e assistir a uma partida. Sentava no sofá e via tudo o que passava na telinha – futebol masculino, futebol feminino, vôlei masculino e feminino, tênis, surf, skate – o que pintasse, ele traçava.
Certo dia, um canal de esportes mostrou uma reprise de um jogo de vôlei feminino entre o Brasil e a Itália. Ele havia assistido ao vivo, sabia que as brasileiras perderam no quinto set, mas não mudou de canal. De repente, percebeu que, no finalzinho, nossas meninas lideravam por 14 a 13. Uma italiana ia sacar, jogou a bola na rede, vitória brasileira por 15 x 13.
“Não pode ser”, pensou, atordoado. “Deve ser outro Brasil x Itália.”
Foi conferir, era mesmo a semifinal do Mundial de vôlei feminino. Jogo realizado em setembro de 2025. Final, 15 x 13 para as italianas.
Nesse momento, ouviu uma Voz. Ou pensou ter ouvido, tanto fazia.
“Somente para seus olhos. Desfrute”. E em seguida, “Agradeça!”
Renato pensou no que acontecera. Das duas uma, estava enlouquecendo ou – alternativa bem mais agradável –, por algum motivo, com o amparo das divindades do esporte, sua imaginação estava recriando, modificando situações passadas, para seu prazer exclusivo.
Para afastar a hipótese de delírio, buscou outro Brasil x Itália no vôlei feminino, pela Liga das Nações. Partida disputada em julho. Pesquisou antes, a Itália venceu por 3 sets a 1. Gravou a partida, para obter alguma evidência do que estava acontecendo, e não deu outra: Brasil 3 x Itália 1. A gravação confirmou, as brasileiras sagraram-se campeãs.
Com a faca nos dentes, Renato agradeceu formalmente aos deuses (e à Voz) pelo favor recebido e partiu em busca de finais brasileiras nas copas de futebol da Fifa. Seus olhos veriam o Brasil conquistar o hexa, o heptacampeonato e o que mais viesse, prefixos gregos não faltavam. Porém, para sua surpresa, verificou que as derrotas inesquecíveis da amarelinha, que doíam na alma de milhões de brasileiros, ocorreram bem antes da partida final. Em 1982, a Itália foi campeã do mundo, mas a chamada tragédia de Sarrià – Itália 3 x Brasil 2 – veio antes das semifinais. Ele conseguiu inverter o resultado, mas foi-lhe impossível levar a equipe mágica de Zico e Sócrates até a sonhada conquista do tetra. Aparentemente, seleções eliminadas na dimensão real tinham mais é que pedirem o boné e saírem de fininho, na esfera da imaginação surreal.
Mas havia uma partida em que ele poderia dar aos tupiniquins mais uma taça: Brasil x França, final da copa de futebol de 1998. A França tinha vencido por 3 x 0, chegara o doce momento da vingança.
Dessa vez, a advertência veio antes das transformações:
“Somente para seus olhos. Desfrute. Verifique tudo, antes de agradecer.”
As mudanças ocorreram conforme previsto. Zidane, o herói dos 3 x 0 no mundo real, incorporou um perna de pau rápido e não acertou um mísero passe. Final, Brasil 3 x França 0, três gols de Ronaldo.
Enquanto, na sua TV, os brazucas comemoravam a vitória, Renato, obediente à Voz, foi checar as vitórias brasileiras, antes de agradecer. O pentacampeonato veio em 1998, graças a seus esforços, mas o hexa continuou inatingível: em 2002, a Alemanha foi campeã do mundo.
– Desfaz tudo! Sem mudanças – berrou, a voz rouca.
“Fez bem em não alterar a trama”, soou a resposta.
Desde esse dia, ele tem muito cuidado nas transformações que sua imaginação implementa. No vôlei masculino e feminino, deu ao Brasil campeonatos seguidos nos jogos olímpicos, nas copas do mundo e na Liga das Nações – aparentemente, os efeitos disso na “realidade” são bem menores que no futebol.
Ainda assim, teve de segurar-se para não criar uma versão exclusiva do Brasil x Uruguai na copa do mundo de futebol de 1950: sua imaginação vingaria o maracanazo, levaria a seleção nacional à vitória por 2 x 1. O que o conteve foi a observação da Voz, “Fez bem em não alterar a trama”. Pensou na trajetória do Uruguai, que tinha o melhor time do mundo em 1950 – e nos 75 anos seguintes não foi campeão uma única vez. Além de alimentar a soberba tupiniquim, a vitória em 1950 poderia impulsionar um fluxo prematuro de craques para equipes europeias. E se isso trouxesse a derrota brazuca em 1958, 1962 e 1970? Ele teve calafrios só em pensar.
Por essas razões, na esfera do esporte bretão, Renato limita-se a criar pastiches de fracassos doídos, mas nos quais não estavam em disputa campeonatos. Não se cansa de ver, por exemplo, a Alemanha perder para o Brasil por 7 x 1, na copa de 2014.
Melhor ainda, aprendeu a interferir nas imagens, acrescentando-lhes ou retirando-lhes elementos. Hoje, vai brincar de novo com o desastre de Sarrià, em versão renatesca – que os italianos chamam “il desastro da Sarrià”. Na última vez, colocou perucas louras na equipe de Paolo Rossi, os fiosdeumaégua ficaram uma gracinha; agora, vai acrescentar vestidos justos, tipo tomara que caia.
– Vamos ver se, depois disso, as ragazzas ainda conseguem correr em campo – diz, sentado no sofá, enquanto se entrega a seu prazer solitário.