Vitrine do Brasil
Sagrado, profano, purgatório da beleza e do caos, mas acima de tudo Rio
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Eu sou Vila Isabel, sou o Largo do Estácio, Leme, Copacabana, Arpoador, Ipanema, Leblon, Campo Grande, Bangu, Realengo e Jacarepaguá. Sou também a Rocinha, o Vidigal, os morros do Fubá, da Conceição, do Cantagalo e do Pavãozinho. Sem modéstia, eu continuo lindo, mas deixei de ser maravilhoso desde que fui abandonado pelos governantes, a maioria carioca de berço. Hoje, vivo solapado pelos políticos aventureiros e de ocasião e dividido entre cidadãos trabalhadores e ordeiros, traficantes desordeiros travestidos de Robin Hood e agentes da lei transformados em bandidos, também conhecidos por milicianos. Já fiz parte de cartões postais exportados interna e externamente.
Reconhecido pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade, cheguei a hospedar reis, rainhas, príncipes, princesas, sheiks, artistas e turistas endinheirados e poderosos de todos os lugares do mundo. Seja pelas praias, pelas paisagens apaixonantes, músicas, locais históricos, gastronomia ou pelo próprio gentílico carioca, uma coisa é fato: ninguém duvidava quando me apelidavam carinhosamente de Cidade Maravilhosa. Nos tempos da bossa nova, virei flor, amor, fervor. Minha alma cantava e, de ônibus, trem ou avião, todos que me visitavam morriam de saudade logo na chegada, pois sabiam que um dia teriam de voltar para suas praças.
Sempre fui 40 graus, mas cheia de encantos mil e coração do meu Brasil. Poucos de meus habitantes um dia não incorporaram a tese do maestro Tom Jobim, que, para meu encantamento, dizia “eu não moro no Rio, eu namoro o Rio”. Dos vários poetas que já me homenagearam, um deles (Manoel Bandeira) louvou o Padre, o Filho e o Espírito Santo. E disse mais: “Louvado Deus, louvo o santo de quem este Rio é filho”. Que maravilha o tempo que me via sem grades, sem pichações, sem sujeiras, pedintes e tiros nas vias públicas. Sei que vão me achar metido, mas no meu céu era onde o sol parecia brilhar ainda mais. E havia tranquilidade nas ruas, nas praças e nos shoppings. Os morros, hoje comunidades, eram pura festa. Os antigos governadores jamais mandaram matar para ganhar votos.
Quem não viu ou viveu meus tempos de glórias – os anos 40, 50, 60 e 70 – nunca entenderá o motivo pelo qual me chamavam de Cidade Maravilhosa. Acabaram com a geral do Maracanã. A alegria do futebol não existe mais. Os belos sambas enredo e suas histórias são peças de museu. Os meninos Jovem Guarda da Tijuca (Tim Maia, Erasmo Carlos, Roberto Carlos e Jorge Ben) foram engolidos pela turma mais madura de Ipanema, Leblon e Gávea. Era a Bossa Nova nascendo como contraponto ao rock de Elvis, Chuck Berry e Chubby Checker, entre outros. Como cidade da paz, jamais permitiria que roqueiros e bossanovistas fossem inimigos. No máximo, adversários musicais. O violão não admitia a guitarra elétrica, mas todos conviviam sadiamente no Le Bateau, Galeria Alasca, Beco das Garrafas, Castelinho e Arpoador cantando para o povo e endeusando Marta Rocha, Ângela Maria, Cauby Peixoto, Alain Delon e Brigitte Bardot.
Eu era sagrado, profano, católico, evangélico, umbandista e agnóstico, mas, acima de tudo, Rio de Janeiro. Tenho saudades do período em que fui capital e vitrine do Brasil. No entanto, a saudade maior é da época em que era respeitado. Talvez eu continue maravilhoso, mas meu glamour, minhas cores, meus amores e minhas dores de cotovelo não passam de uma vaga lembrança. Meu passado de glórias está disponível somente nas gravuras, nos álbuns de figurinhas, nas canções de Tom, Vinícius, Gil, Caetano, Betânia e de Gal ou nas galerias de arte sessentistas. Assumo a condição de purgatório da beleza e do caos, mas sugiro que meus críticos pesquisem o Google e confirmem minha formosura como berço da Princesinha do Mar, do Pão de Açúcar, do Corcovado, da Portela, Mangueira, Salgueiro e do Flamengo campeão.
Também abrigo o Fluzão, o Botafogo, Vasco, América e Bangu. Se hoje tenho a oferecer Anitta, Ludmilla, Lexa, Bochecha, Léo Jacó, Pablo Vegetti, Tchê Tchê e afins, não esqueçam de que já formei ícones como Zico, Edu, Junior, Roberto Dinamite, Noel Rosa, Martinho da Vila, Jonny Alf, Dick Farney, Nara Leão, Carlos Lira e Cassiano, entre tantas outras feras. O que não imaginava é que me transformariam na origem do funk, da milícia, do Comando Vermelho, das porcarias sem fim e dos jogos de azar. Chorei (e não foi pouco) quando descobri tardiamente que a maioria dos morros que Deus criou para que eu mantivesse o verde sempre verde virou comunidades. Nada contra, porque é nelas que vivem os trabalhadores que impulsionam a economia local. Todavia, por causa da ausência absoluta do Estado, elas hoje dão abrigo ao que há de pior na sociedade: a bandidagem organizada e, às vezes, com mandato.