Curta nossa página


Os peixes

São demais os perigos desta vida

Publicado

Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

São demais os perigos desta vida, ensinou Vinicius de Moraes. E os mistérios também.

Wilson, professor aposentado da rede de escolas públicas paulistana, 55 anos de idade, tinha pouco dinheiro, mas muito tempo de sobra. Por sorte, gostava de ler e tinha uma biblioteca razoável. Também curtia maratonar séries de streaming. Nos últimos tempos, porém, ocupava-se com um novo prazer (ou um novo vício): paquera nas redes sociais. Passava horas cortejando mulheres bonitas ou feias, algumas com a idade de sua filha ou mais jovens ainda. Às vezes, isso rendia uma sessão de sexo virtual. Raras vezes, um encontro ao vivo. E a transa era quase sempre ruim ou, no melhor dos casos, boazinha, jamais conduzia a um segundo encontro. Ele não dava a mínima. “Eu gozei”, dizia sempre para si mesmo. “Ela não? Que peninha!”

Com várias camadas de insensibilidade a cobrir-lhe a pele, Wilson não se importou muito quando uma mulher com quem teclava sumiu do mapa. Eles já haviam escrito coisinhas excitantes um pro outro e marcado uma sessão de sexo virtual para a noite seguinte. Mas as palavras “Então amanhã às 10. Tô morrendo de tesão!” foram as últimas que recebeu dela. Ele a havia procurado à tarde – nem sinal. Vieram as 10 horas, as 11, e nada de sexo online. Desistiu antes da meia-noite, com um muxoxo de indiferença. “Não quis fazer. Pena, ela era gostosinha…”. E riscou-a de seus pensamentos.

Com Eliana foi diferente. Ele a conheceu numa rede social e investiu com tudo, como sempre fazia, mas os papéis se inverteram, ela o conquistou. Era bonita e jovem, da idade da sua filha, mas – talvez a chave fosse essa –, parecia genuinamente interessada nele. E deuses, a voz de Eliana! Era a um só tempo franca e sedutora, como a de uma amiga que se torna uma amante. E o riso cristalino, sempre presente após cada um dos jogos de palavras dele, como que a exigir que jamais se mostrasse monótono ou repetitivo. Aos poucos, a crosta de insensibilidade desgrudou-se do corpo do professor e caiu ao solo, como a pele gasta de uma serpente. Ele sentia-se mais vivo, e percebia que as brincadeiras entre eles estavam se transformando não em sexo virtual, mas numa espécie de namoro virtual. Havia malícia e tesão em seus joguinhos, mas era o desejo de um casal de namorados que vai pra cama pela primeira vez.

E então, certo dia, Eliana sumiu, deixou de teclar, parou de telefonar. E nunca mais deu sinal de vida. Ele mandou dezenas de mensagens frenéticas, ligou sem parar, e nada. Dias depois, buscando na internet os jornais da cidadezinha baiana onde ela morava, confirmou suas suspeitas: ela havia desaparecido mesmo, não apenas virtualmente.

Uma semana depois, Wilson leu num jornal que os casos como o de Eliana estavam se tornando cada vez mais frequentes. Pesquisadores investigavam esses episódios, e um deles, citado na reportagem, trabalhava na capital paulista, num bairro vizinho ao dele. Foi imediatamente procurá-lo.

O pesquisador ouviu sem interromper as palavras nervosas e confusas do professor. No final, observou.

– Mais um peixe, sem dúvida.

Diante do olhar surpreso de Wilson, apressou-se em explicar:

– “Peixe” é como chamo os desaparecidos, os que caem na rede. Você conhece o ditado, caiu na rede é peixe. Devem ser muitos milhares, em metrópoles como São Paulo; gente que some e ninguém nota. Mas em cidades pequenas como a dessa moça, a notícia circula. Por isso, recebo tantos relatos vindos de cidadezinhas.

Entusiasmado, o pesquisador levantou-se e passou a caminhar pelo escritório, enquanto falava.

– Não tenho como comprovar minha hipótese, sua amiga pode ter sido abduzida por ETs, sei lá. Mas acredito que certos usuários de redes socais concentram-se tanto no que fazem que sua mente vibra em uma só nota, afinada e intensa. E então conseguem romper as barreiras do mundo físico, assim como uma nota musical, entoada com afinação perfeita, consegue quebrar um cristal. Eles se integram à rede, caem nela, viram peixes.

Segurando Wilson pelo braço, o pesquisador levou-o até a porta e disse-lhe:

– Sinto muito, ela não vai voltar. Mas acredito que os peixes não estão mortos e sim numa outra dimensão, teclando mensagens que nunca chegam e que expressam seus desejos mais profundos. – Olhou para o professor com piedade e simpatia e concluiu:

– No caso de muito peixes, pelo que conseguimos averiguar, a nota pura e intensa foi atingida quando pensavam em sexo virtual e transas ao vivo. Mas no caso de sua namorada – e a palavra saiu natural, como beber água para matar a sede, e foi ouvida da mesma forma –, o que a transformou em peixe foi um sentimento mais completo, mais rico. É triste perdê-la, mas, de certo modo, é um consolo saber que, por toda a eternidade, ela vai estar escrevendo, absorta, mensagens de amor para você!

Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2025 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.