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Sangue latino

‘Secos & Molhados’ revive com memória da avó

Publicado

Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Reprodução das Redes Sociais

Foi numa noite de 1978, quando lá fui, levado pelas mãos de minha mãe, para a casa de uma tia. Durante aquelas infinitas partidas de buraco, minha tia começou a puxar conversa comigo, que estava afundado no sofá.

– Gosta de música?

– Sim.

– Do quê?

– Secos & Molhados.

– Você tem os dentes separados. Aposto que canta que nem o Ney Matogrosso.

Não sei quem venceu o carteado, mesmo porque nunca gostei de passar horas fazendo e recebendo sinais do parceiro sobre essa ou aquela jogada. Gostava de paciência, mas não as de uma fileira acima. Minha avó, que sempre foi o grande amor da minha vida, me ensinou outra, que possui duas fileiras nas laterais, cada uma com quatro grupos de cinco cartas.

Além do baralho, minha avó possuía o hábito de tomar remédios. Eram tantos, que os vidrinhos se acumulavam dentro de uma gaveta na cozinha. De vez em quando, ela me dava um e dizia para ir brincar no quintal. E lá ia eu sorrindo aquele diastema, que me tornava único entre as crianças da rua.

Lembro-me de uma mangueira, que ficava mais ao fundo do terreno. Minha avó, certa vez, me disse que aquela era a minha árvore. Nem acreditei que aquele ser enorme fosse só meu. Tentei abraçar o tronco, mas meus braços de menino eram muito curtos. Além disso, a aspereza da casca me causava certo desconforto, que eu tentava disfarçar para não fazer com que a minha avó desistisse daquele gesto tão generoso. Uma árvore! Aos oito, o neto da dona Estelita possuía uma árvore.

No final de 1992, logo depois de retornar para casa nas férias da faculdade, fui informado por minha mãe que vovó não estava bem de saúde. Meu avô havia nos deixado dois anos antes por conta de um câncer tão comum aos de sua geração de fumantes. Seja como for, dona Estelita requeria cuidados e, por isso, iria morar conosco.

Não me incomodei em dividir o quarto com vovó. Pelo contrário, ela sempre havia sido minha maior confidente. Agora, no entanto, os assuntos eram outros, inclusive de supostas namoradas, que nas minhas falas se tornavam muito mais interessantes e apaixonadas por mim.

Vovó sempre me falava que queria conhecer a menina que eu fosse escolher para ser minha futura esposa. Como se eu fosse um príncipe que pudesse escolher qualquer uma das garotas da faculdade. Mal sabia ela ou, então, fingia desconhecer a minha total falta de traquejo com as mulheres. Mas isso não era motivo para deixarmos de passar horas divagando sobre as minhas inúmeras pretendentes: Maria Júlia, Roberta, Lúcia, Ana Clara, Solange, Cíntia…

Eram tantas, que já não conseguia inventar tantos nomes. E, se eu repetisse algum, minha avó, sempre muito perspicaz, logo me dizia: “Outra Mariana? Essas moças não deixam o meu neto lindo em paz!” E ríamos madrugada adentro.

Foi pouco depois da minha formatura que vovó nos deixou. Foi num dia chuvoso, como se toda a cidade chorasse a perda daquela mulher maravilhosa. Diante do caixão, seus olhos, mesmo fechados, pareciam enxergar a angústia que me tomava. Seu rosto sereno, entretanto, me transmitiu uma paz e a certeza de que logo estaríamos juntos novamente.

Desde então, o tempo passou, às vezes vagarosamente; outras, ligeiro como um preá que se esgueira no mato. Não me lembro de ter arriscado sonoros agudos. Todavia, até hoje guardo com uma boa dose de pretensão a certeza da minha tia. Ainda ouço “Sangue Latino”, que me remete à minha infância.

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