Missa do Vaqueiro
Serrita faz festa em julho para manter viva a cultura do sertão de Pernambuco
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Está chegando a hora (e os dias) de provar que no sertão, até o silêncio tem canto. E em julho, lá pelas bandas de Serrita, no coração empoeirado de Pernambuco, onde o galope vira ladainha e a fé se veste de couro. A Missa do Vaqueiro não é só missa — é manifesto. É celebração de um povo que se recusa a desaparecer, mesmo quando o chão racha e o céu não chove. Quem já assistiu – estou entre esses privilegiados – abe disso.
Desde 1970, quando o padre, o poeta e o vaqueiro se juntaram — Domingos Sávio, Luiz Gonzaga e Raimundo Jacó (vivos apenas na memória) — o sertão viu nascer um altar no campo. Nada de vitral ou catedral. O templo é o céu aberto, e o incenso se mistura à fuligem dos arreios.
Chegam aos poucos, como quem não quer deixar pegada, mas deixam rastro de história; São os vaqueiros, com seus gibões curtidos de sol e tempo, montados em cavalos que conhecem mais as veredas que o próprio GPS do mundo moderno. Vêm de todo canto, como romeiros de uma devoção sem dogma: não é só fé em Deus — é fé no gado, na seca que um dia passa, na vida que insiste em se manter viva.
Quando lá estive, naquele julho aceso de sol, dentre veio também Zé Lourenço, o vaqueiro velho da Baixa do Mulungu. O cavalo, já cansado. Ele, mais ainda. O gibão pendia nos ombros como relíquia. O couro do chapéu rachado parecia rezar junto com ele. Era sua última Missa do Vaqueiro — pelo menos era o que dizia a si mesmo, e ao menino que trazia na garupa – o neto, Davi, olhos arregalados, primeira vez ali.
— Vô, e Raimundo Jacó era de verdade? — perguntou Davi, entre o trote e o calor.
— Era sim, meu filho. Morreu matado, mas vive todo ano nesse terreiro de fé. Era vaqueiro dos bons. Andava com as costas feridas, mas a alma limpa. Desses que não foge de gado nem de palavra.
— E o senhor conheceu ele?
Zé coçou o queixo encardido de tempo.
— De vista e de respeito. Tava em toda conversa de fogueira. Vaqueiro não morre, Davi. Vira rastro, vira canto de aboio, vira exemplo.
O menino ficou em silêncio. Guardava cada palavra como quem ajunta pedras para um futuro muro de lembrança.
Durante a missa, o velho Zé fazia o sinal da cruz com a mão firme. A bênção do padre parecia entrar pelas costuras do gibão. Já não ouvia bem, mas cada palavra lhe chegava inteira: “abençoados sejam os vaqueiros do sertão, os vivos e os que já se foram”.
Na hora do ofertório, Zé tirou do alforje uma espora antiga. Era do pai dele. Entregou ao neto, com a solenidade de um testamento:
— Guarda, Davi. Isso aqui não é só ferro. É raiz.
O menino segurou como se fosse um relicário. Depois, os dois voltaram em silêncio. Um pensava no fim. O outro, no começo.
Passaram-se muitos anos.
A poeira subiu de novo pelas bandas de Serrita. Era julho, claro. O céu, sem nuvem, mas cheio de promessa. E entre os vaqueiros que vinham de longe, surgiu um rapaz, montado firme, gibão novo, mas já riscado de luta.
Chamava-se Davi Lourenço.
Trazia na cintura a espora do avô. No rosto, a sombra do mesmo chapéu. No peito, um aperto doce — desses que só sente quem volta, depois que o mundo girou. Olhava o altar de chão batido com olhos de saudade e gratidão. Sabia que agora era ele quem carregava a memória.
Na hora da missa, ajoelhou-se entre os velhos. Rezou com os olhos fechados. Quando o padre disse “os vivos e os que já se foram”, Davi não respondeu “amém”. Respondeu com um aboio. Forte. Dolorido. Lindo.
A Missa do Vaqueiro não está só no calendário. Ela está no sangue. No couro. No choro contido. No orgulho em silêncio. Porque ali, entre um “amém” e um aboio, o sertão não apenas reza.
Ele se reconhece. E se reconduz.
Hoje faço minhas as palavras de Gonçalves Dias, em I Juca Pirama. “Meninos, eu vi”
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José Seabra é diretor da Sucursal Regional Nordeste de Notibras