Dor
Shopping
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Entrou no centro comercial como quem conhecia a dor.
As portas envidraçadas pelas quais atravessando ele passa deixam um suave rumor, um rugido sem alma do tráfego indolor da cidade.
Calmos carros passam como se não existissem na mente, como ondas mansas mergulham de encontro às rotundas, aos semáforos, às vias rápidas e iam dar a lugar nenhum indefinidamente, indo e vindo, num ser e não ser diluído num ténue esquecer de carros rápidos a passar zunindo, pelas portas envidraçadas ele a atravessar, as portas a abrir e a fechar, e tudo na mente dele a desvanecer suavemente aparecendo e se abrindo no shopping casual em que estava ali vivendo inteiro naquele tempo infindo.
O chão era de pedra polida, branca como marfim.
Cada passo que dava dentro do centro comercial sentia-se acelerado, o coração a bater descompassado, agitado, as pessoas nas lojas a olhá-lo cheias de brilhos e de convites e de assédios plásticos, mas ele, nada, nada dentro de um fato, caminhando decidido rumo à loja do último andar como um sereno gato, um gato que cai sempre de pé, pé ante pé imbuído de uma estranha fé.
O que se passasse seria apenas subtil recordação de si mesmo, em comunhão agreste com aquela gente, gente feita de substâncias, de errâncias, de agregados e de vivências, de experiências e de ténues recordações, vidas mal vividas aos tropeções, gente caída a repetir novamente lições, acorrentadas ao rumor mole daquele centro comercial artificial, seco e sem sol.
Músicas como estranhos coros saíam de cima do tecto altíssimo decorado a negro e a pedra jaspe.
Sentia-se ali um traste, sozinho, como uma sombra deslizando trilhando um único escolhido caminho por entre os ramos da sua árvore abrindo-se ao sol e agitando-se conforme o destino, pelo vento de um fado levado devagarinho.
Caminhando com cem euros na carteira, indo por ir na corrente do consumo inútil e do viver fútil e tudo isso gostando mergulhado num estranho e apressado bulir, como um peixe sem cor e sem sentir, numa água turva, entre mil peixes de outras cores apressados e rápidos correndo a zunir, imersos numa água absurda, a de ter de haver consumo e mais consumo para apagar e pagar uma ténue existencial dor surda.
Que calor!
De ter de ter.
De olhar para os outros numa altivez de águia ferida.
Subiu as escadas rolantes como quem levita para um outro céu e procura no labirinto de tudo uma saída, o ser-se seu, numa viagem de bilhete com volta e ida.
Olhou os outros dali do alto, lentamente a subir, enquanto ia naquelas escadas com a consciência suavemente a tremeluzir…
E em imersas palavras emitiu um estranho sentir, como se de repente se autoconhecesse nos outros num inocente acto de algo pressentir.
… A tribo, falando a mesma língua, pessoas ocupadas e entretidas a estar e a ser, o quanto era vão o ter que nelas e nele persistia…
E começou a sonhar enquanto pelas escadas rolantes sonhando subia…
… e num sonho desfazendo-se entrou de súbito numa sacristia, e falou com um velho homem que lhe dizia: estás morto!
Mas o sonho de viver persistia…
E assim ficou absorto, subindo numa sonolência as escadas lentas que o levavam a um outro piso cheio de demência.
Algures era ele ali mas um outro, um estado alterado da consciência de águia a voar sem pouso…
…Gentes nas lojas passavam como se fossem lojas com coisas dentro…
Iluminadas a nadas pela vida carregadas com objectos preciosos sem durabilidade nos seus sacos plásticos artificializados com verdes dizeres dizendo coisas como Liberdade e mentiras condicentes.
E as pessoas prendiam-se umas às outras por afinidades electivas e por mútuas vibrações e gostos de dores partilhadas, semeadas por aquele piso como centelhas de sol que um dia estarão iluminadas, espalhadas por aquelas doces esplanadas do nada fazer, apenas conversando a tarde e talvez fosse tarde para o fazer, sentadas em bancos de plástico, seriadas e bebidas rápidas pela vida como um café expresso que alguém toma só e ninguém o convida, sob os tectos falsos ao sol junto às plantas artificiais do viver mole, imersas todas no imenso vasto universo.
… A beber chá de água quente despachada pela empregada descartável de mês a mês, que sorri como quem outro avia esperançada em ter apenas fôlego para viver outro dia em que terá nova e impermanente jornada e um futuro que sempre se adia, um salário que não dava para nada mas era ali todo o esforço da sua vida, disfarçada como empregada ela, a brilhante estudante, que às mesas servia, pois de momento isso era tudo o que a sua amedrontada mãe queria, e talvez fosse fachada, talvez tudo fosse fachada porque a menina empregada era doutorada, ardente esteta que rodopiou o olhar pelas montanhas de livros que teve de ler, pelas tardes perdidas sem sol em que leu e leu livros em bibliotecas apinhadas de gente, a ler e a ler compulsivamente e impulsivamente respirando o ar da competição querendo acima de tudo dinheiro e mais dinheiro urgentemente, dinheiro urgentemente e um diploma na mão, que hoje já não tem sabor, a não ser terem-lhe dado o diploma e não lhe terem dado a mão ou amor, e a recordação disso numa foto perdida numa gaveta, com os pais sorrindo naquela tarde de sol junto à igreja, e o estulto orgulho de ter passado longos anos a viver num sonho imaginado pelos pais, que vais que vais, Armanda!, vais sim!
…E agora, agora, doutorada em nada, lavando as xícaras de café dos eventuais comensais, nas mãos lúcidas o detergente quente e sentir-se de repente que simplesmente já não é gente, apenas ruína a trabalhar urgente com a água a escaldar nas mãos cheias de detergente…
O que sonhava ela quando era adolescente? Perguntou ele enquanto as escadas subia.
A mesma coisa como todas as meninas da sua idade, ver-se repetidamente, nas séries americanas repetindo-se em lugares-comuns indefinidamente proferidos pelas conversas dispersas da cidade, nos estereótipos de poder com belas cenas e bum bums a condizer, nos carros de luxo, nas mansões, nas festas até mais não vistas apenas pela televisão, numa ânsia, numa inexplicável ânsia de foder, de ter namorado e a vida reclusa um dia largar, e imerso tudo isto num mundo de maya, a ilusão, a ver contente e sorver com a mente como toda a gente o ídolo da televisão igualzinho aquele que nunca iria ter como namorado, a não ser, a não ser…
…Aquele tipo do lado de olhos carregados de trabalho que a convidou a beber café na loja dos scones, talvez fosse ele, talvez, mas agora tenho trabalho, disse, por favor tenta mais logo, e o tipo lá ia, de olhos carregados de trabalho e de discussões com a mãe a passarem-lhe no olhar em cenas de desdém, a ter de fazer o turno da noite e ainda aguentar a total e descarada exploração do patrão pelo cifrão que não lhe aumentava nem sequer em dias de folga um único tostão, apesar de vinte anos de estudo e de ter um precioso canudo continuava sisudo e oculto num turno da noite, como um cão levado na trela de um sistema cego tendo o lucro como único lema, lá ia o tipo a pensar nela em suaves tons carregados a vermelho, por suaves vapores de pensamento movendo-se lento como num sonho permanente de saudade de amor, ele iria parar a sua dor por um momento, talvez por um momento, sonhando com sexo casual algures num ténue apartamento, hummm que bom seria…
Isto dizia sentindo um leve aumento…
Mas após algumas semanas com ela tudo seria um tormento, as discussões como pistolas atirando balas sem cessar em jantares caseiros que acabariam em inevitável pranto e partir de pratos, e o que era bom decerto um dia iria acabar de facto, os inúmeros telefonemas a chorar e os comprimidos todos seguidos a tomar, sempre sempre e sempre isto e aumentando a dose da dor diária como um cego cavalgar para o inferno de Mefisto…
Oh dor, oh dor desta gente extraordinária!…
Pensava ele isto subindo as escadas rolantes, vendo as pessoas ocasionais não já como pessoas suas iguais mas como ovelhas dispersas num pasto, num vasto verde pasto, balindo lá no chão, como se o centro comercial ali fosse um grande pasto e ao mesmo tempo uma grande prisão, com o único intuito de sorver das ovelhas todo o resultado do seu labor, o tostão, para depois se angariar mais razão para justificar todo aquele labor desenfreado de manter tudo ocupado numa perene dinamização do consumo e da produção deixando a fruição de lado, esta alcançava-se por breves momentos de inspiração no amor, onde de súbito se tropeçava na verdade mas, logo a seguir, numa inoportuna distracção, lá vinha a dor de consentir este ter de ser assim, e o rebanho prosseguia balindo, num eterno ciclo sem fim e sem solução, e Sísifo sorria com a pedra rolante na mão.
Para milhares de ovelhas nesta prisão do capital decidir como viver era um permanente arrasto no pasto para apenas sobreviver, dar amor e conhecer era visto como algo nefasto, um diferente estranho novo pasto, e não havia tempo para o ver…
Ele saiu das escadas rolantes, já num piso superior, e continuou o seu caminho palmilhando pavimentos graníticos vidrados e espelhados, e aumentava a sua dor, pois tudo o que queria era partilhar o pão da sabedoria do seu amor, muitas vezes o seu olhar isso dizia, mas por ser fraco ainda não conseguia, dar-se de corpo e alma ao próximo como se a razão de tudo fosse isso, amar, amar e do infinito universo ser sempre aprendiz submisso, pensava nisso, passando por pessoas anónimas que caminhavam sem nome e sem destinos badalados, falando nadas em cores difusas em suaves tons de palavras confusas emanando tribais semifusas de dizeres tipificados, não compreendia aquela gente, estava numa Babel de sorrisos nunca entendidos, nunca compreendidos, em si enrolou-se numa escada até ao fundo do ser profundo e nada mais encontrou a não ser a dor do mundo, e a noção de ter de ser algo para ele, isto dava-lhe forças, isto dava-lhe forças e pensando nisto foi prosseguindo, e pisou outras escadas rolantes que davam para o outro piso e levaram-no indo.
E foi olhando.
E haviam roupas nas montras e odores sedutores saindo das portas das lojas convidando a entrar, convidavam-no distraidamente por ocultas mensagens no inconsciente instaladas pelos brilhos da lâmpada florescente sugerindo-o a tudo olhar, a comer com o olhar em tudo e tudo de uma vez gastar, e que gozo que era gastar gastando-se ali…
E haviam roupas de veludo, relógios e charangas para tudo, brinquedos de plástico que trocavam segredos da China, mil e uma inutilidades das mais variadas variedades e uma câmara vigiando tudo em cima, tudo para todos em todos os tamanhos, e toda a gente ali, passeando o seu estar como pavões desfilando de plumas no ar, a passear a sua classe média, empobrecendo-se alegremente, naquele centro comercial monumento da dor colossal de toda aquela gente…
Gente que vivia casual como algo que se mostra e se vende, num estar que se passa sem nada se passar, desfilando no chão os seus passos perdidos, idos de um sítio onde os davam a brilhar, agora caídos ali, passeando-se na efémera novidade, ausentes e esquecidos da outra cidade, gente encantada com o som da música, pela música levada e pelos tocadores dela deliciada…
Música que faz esta gente ser importante somente naqueles puros, breves instantes, em que se recordam de um tempo e lugar onde estiveram antes, em que pé ante pé miram e remiram as lojas dos anéis de brilhantes, fugindo à dor de viver, sonhando-se como seriam antes, apressando-se raras para apenas sorver repentinos os restantes momentos nos ocultos movimentos que Vénus ali lhes veio conceder, passar, mirar, gastar e desejar, arder…
Como se na última promoção se descobrisse o sabor da glória quando num supremo acto de vitória se efectua uma inútil compra e se completa o ser.
Como quando se coloca o cartão de crédito na carteira com os dedos ágeis e subitamente se finge rico ser.
Quando se abandona a caixa registadora depois das compras feitas e se olha para as suas mil e uma empregadas de mil caras descartáveis triunfante por não se ser como elas, figurantes no teatro dos outros, remexendo tachos e panelas e morrendo de amores por caras das telenovelas.
Quando se passa então a viver realmente, porque se tem dinheiro, incertamente, e se tem a certeza de se ser triunfal porque se usa a última marca reconhecida mundialmente inscrita na embalagem do seu detergente…
E nada nos faz mal, e tudo nos faz mal, diz-nos de repente num canto do inconsciente a imagem do médico ausente.
E caminhando alegremente, carregando sacos de plástico com detergente, vai-se para casa confiante como toda a gente mirabolante enquanto o sol nos dá uma réstia de esperança no nosso ténue semblante de herói da classe trabalhadora, eterno lutador diletante, ou o que for, o que for…
Ó dor, esta gente não tem de facto consciência de si como peregrino errante…
Nisto pensava ele ao subir para outra escada rolante.
E lembrava-se agora do que dissera o filósofo da moda nas palavras da moda sabiamente tecidas em urdiduras sociais até á exaustão repetidas, palavras nítidas palavras soando como um estranho sonho nas colunas de som do shopping que vibrando parecem ainda estar ecoando:
…O trabalhador é consciente do seu papel social, é serviçal e está ao serviço de uma cadeia de interesses que o esquece enquanto digita números ao computador…
…Cadeia essa que com caras de computador lhe diz o que tem de fazer não mostrando por ele a mínima compaixão, não lhe tolerando a mínima dor, apenas impõe e manda sorrindo enquanto está o trabalhador despedindo, enquanto os lucros nas suas bolsas e nos seus mercados estão subindo numa hierarquia que só a submissão consentida privilegia…
E o que vai de sacos de plástico na mão com a promoção do detergente da ocasião, aceita e beija e ama esta situação, pois para ele essa é a sua fruição, e lá vai ele, triunfal de saca na mão até ao pôr-do-sol encontrando nisso todo o sentido e a direcção de uma vida inteira feita de lhe terem mentido, de pura escravidão e de ditadura mole…
E o que vier há-de for, e o que vier há-de for…
E subindo pelas escadas rolantes da sua solidão, olhou aquela bela moça de olhar azul empregada precarizada com ar de fina, segurando uma meia, em pé e de mãos apoiadas num balcão.
Subitamente as colunas de som do shopping pareciam ecoar, numa surdez de nitidez como quem é banhado pelo toque da morfina e está a gostar, estas palavras como suaves nadas passeando-se pelo ar:
…Meninas modeladas pelas teorias económicas da moda, empregadas da universidade tiradas, rendem-se aos encantos de serem seduzidas pela facilidade de arranjarem rápidos fundos de maneio vendendo a sua alma pelo meio, rodando em turnos pelos balcões de atendimento dos shoppings e pelos escuros cantos da cidade prostituindo-se como único meio de sobrevivência, para terem roupas, perfumes, a ilusão da independência e da emancipação precoce, tudo isso envolto num odor a perfume de loja cara…
…Algumas moças vestidas de vermelho aceitaram do pai alcoólico o prudente conselho, ave rara, que as não educou porque putas procurou deixando a mãe com mil encargos, esgotada e revirada do juízo por já não haver paciência, nunca teve paciência aquela mulher, e naquele bairro todo onde viviam houve um surto abrupto de colossal demência ou uma coisa assim qualquer e nada de nada sabiam…
…Naquela casa onde morava a bela moça, á hora do telejornal, tudo estava já sem consciência, assistiu a todo o tipo de violência com palavras vindas do campo lexical do horror proferidas pelo afamado locutor, senhor doutor, eminência, enquanto à mesa se come pizza e croissants adocicados e se assiste de graça aquela festa da desgraça em festins lautos de gente desorientada, falando uns para cada lado e com a conversa estragada, enquanto as crianças jogam jogos inúteis que um dia só lhes serão úteis para embarcarem e consentirem em ser apenas jogos de brincar nas mãos de um patrão que apenas quer especialistas em teclar, teclar, mexer com o rato, falar pouco e para ele facturar…
E marchava a juventude ali como inúmeros soldados idiotas nas mãos de agiotas marcados em mercados que os estão lentamente a produzir, treinados para apenas cobrar e seduzir, falar e encantar e para depois com o dinheiro sumir, são como os farsantes da feira de olhos a reluzir olhando as ovelhas pueris nos vastos campos verdes inocentes a balir…
E um menino olha o boneco do rambo na montra, e ali mesmo um substituto para o seu pai encontra, enquanto o padrasto o leva pela mão, ele a chorar copiosamente sempre a dizer quer não, quer não, não quer mais ver o pai que bateu na mãe, agora quer apenas brincar mas já não tem ninguém, depois das oito horas da noite numa escola vazia já sem ninguém, vê a sua existência fria entediado até à morte com o que lhe dá a escola a engolir sem nenhuma intrínseca alegria o que lhe coube por sorte, apenas forjado para consumir e produzir, o menino olha o boneco do rambo na montra e tem os olhos a luzir…
E assim passa ele para um novo piso, subidas as escadas rolantes e sentindo-se como nunca antes, agora preso porque livre, com o passo lento num rápido movimento lento vendo este dreamy dream da gente que por ali passa, e até parece que o ar súbito a lixívia emanada por uma empregada desgraçada da limpeza nunca calará a desgraça que por aquele shopping feliz ali perpassa.
E ele assim vai, cem euros no bolso para gastar, vai que não vai, põe no seu olhar um súbito pensar, enquanto a caminhar vai pelo shopping a deambular o seu ser estar sem tempo nem lugar.
E a bolsa de Tóquio desceu e também o Nikei, e no cartaz do cinema exibe o seu orgulho mais um actor gay, e a moça que agora passa olha demoradamente para o seu telemóvel não reparando em mais nada a não ser ver se a aplicação está actualizada e já não sabe sequer para aonde vai, depois daquela sexta-feira cheia de dma e vodka está uma imagem em si mesma que já não sai, o puro horror de não ter amor e de ter estado nua frente ao chuveiro, chorando olhando os azulejos sem cor da sua casa arrendada, mora perto tem tudo perto mas está desempregada, olha as montras casualmente desejando ter o que nunca irá ter certamente, e a moça assim passa apressada como uma ventania, outra aparece e vem mas é algarvia, cheia de nada mas com champôs na cabeça, a desejar ser igual à miúda drunfada do anúncio das calças de marca registada, soube-se que era multimilionária mas é só na sua cabeça que isso se passa, vendo desfilar coisas inúteis no facebook, rolando o olhar para as fotografias coloridas da inveja green, olhando para as coisas todas através de xanax e de um esplendor ténue a spleen, menina jeans vinda de Tavira, passa por ele como uma visão de sedução como ele nunca antes vira, a caminho do emprego do desemprego como caixa que só funciona a baixa, aturando os olhares da gente rica, despedida três meses depois quando o telemóvel lhe tocou e lhe disse numa voz doce:
“Você não fica!”
E tudo se esvai num suave sonhar breve…
Shopping do morde e suga, ali vai ele como um lagarto cuja pele sempre muda, sob o sol caminhando incerto alheado e lúcido envolto num urbano deserto, invisível na cidade de cimento ao céu aberto, cem euros no bolso para gastar e a morte está sempre perto…
E assim vai caminhando, ouvindo a música hipnótica que põe a gente robótica saindo dos altifalantes do supermercado.
Vendo as gentes a escolher o que mais barato lhes apetecer. De olho vivo na promoção e no fantástico preço de ocasião, colocando a mão no bolso contando cada tostão.
E o fim do mês longe, longe como uma miragem que se vê como o tédio de viver no olhar parado, mirando as prateleiras cheias daquele insano fausto de todo aquele supermercado, e assim tudo ter de ser, e assim tudo ter de ser, uma insatisfação pura e urgente de toda a gente a felicidade querer ter e isso saber, de ter gozo de querer viver e isso a todos partilhando, os seus olhos rebrilhando quando aquela mulher está passando, como que se nela visse as rodas do destino girando, como se isso estivesse constantemente a acontecer, e assim por entre transeuntes clientes vai caminhando em passos silentes isto suavemente pensando:
… Quando, ó quando…
…Meu ser num mar alto está a luz esperando, aqui nestas águas paradas meu cais está apenas estagnando…
… Quando ó quando…
…O fim de não saber, pois sempre a nascer morrendo aqui simplesmente estou, ficando só, com o Sou, subindo estas escadas, e mais nada sei, o tempo parou, e mais nada sei, nem mesmo o lugar onde estou, e tudo o que sei é ser nadas pelo vivendo em que me vou, subindo estas escadas, até ao último piso para encontrar quem sou…
… E parece não haver final para o incrível labirinto do pensamento entrando em todas estas vidas, levantando véus e acendendo instantâneas labaredas que súbitas se vão com o vento…
Ele pisou o último piso num suave lamento.
Foi à varanda ver o sol e o jardim.
Demorou-se um pouco a contemplar a paisagem.
Depois.
Desceu de elevador.
E saiu do centro comercial como quem conhecia a dor.